Esse código sereno

RIO DE JANEIRO – Faz mais de ano que não nos vemos, minha velha amiga e eu. Velha é carinho. Mas não precisa apagar a conotação do tempo. Curiosa coincidência. Pensava nela, uns fiapos de reminiscência, e ela me aparece assim sem mais nem menos. Um só instante e estamos à vontade. Está bem, muito bem, posso dizer, sincero. Como a lua, mulher tem fase. Você está na lua nova, digo, convicto. Crescente, ela corrige com bom humor.

Confortável, essa atmosfera que se estabelece entre nós. Podemos retomar agora a conversa de um ano atrás. Entro e saio, divertido, por temas e tópicos. Um monossílabo, um olhar – e estamos entendidos. Nenhuma explicação se impõe. Nosso código está alerta. No que dizemos há mais do que dizemos. Estou mais loquaz do que ela. Mas sem ênfase, ou explicação. Também dispenso as meias palavras. Nossas antigas novidades.

Essa imantação recíproca não se improvisa. Deita raízes longe. E é de lá, desse tempo não mencionado, sequer agora sugerido, é de lá que nos vem esse bem-estar. A serena certeza de que estamos bem como estamos. Essa familiaridade que se instala e quase nos dispensa de seguir a pauta de um encontro não programado. Conversamos de ouvido. De ouvido calamos. A tarde calma não traz nenhum presságio. Aqui estamos, sem pressa nem constrangimento.

No aroma do café, bem forte como prefere, há resquícios de uma velha evocação. Sim, como a lembrança está perto do remorso! É um verso de Baudelaire, não? Mas agora não há remorso nem lembrança. Apenas esta doce partilha. Enquanto falo, seus olhos olham para dentro e sorriem. Sei o que vê e de que sorri. Porque sabe que sei, nada me diz. Nem uma simples palavra de passe. A pique de uma pergunta, se levanta e se serve, displiscente, de mais café.

Caminha, vagarosa, até a janela. Não a conhecesse e diria que contempla, interessada, o que lá fora lhe chama a atenção. Mas não somos neste momento, ela e eu, consumidores de paisagem. Nem de espetáculo, banal ou insólito, pouco importa. A vida isola, penso comigo. A gente devia se ver mais, diz ela. Se prometer que vai reunir os amigos em sua casa, sabe que não vou acreditar. Não promete. Deixar a vida seguir assim, nesse embalo de onda que vai e que vem. E se esvai.

Otto Lara Resende. Folha de S. Paulo, 6/12/92.

(De um recorte amarelado de jornal.)