Falando em reminiscências… Fui me lembrar de uma coisa que pareceu um pesadelo. Minha irmã diz que eu só lembro de coisa ruim, é mentira, eu lembro de tudo. Não queria ser assim não!

Foi num dia quente de janeiro, quente e pegajoso. Eu tinha passado a tarde no Jardim Botânico, com minha blusinha de crochê (meio grossa demais pro calor que tava fazendo), bermuda jeans e uma dessas sandálias de couro da Pele Rara que, a essa altura, tinha todo um ecossistema trazido dos jardins por onde eu tinha passeado. Estava passando na TV New York, New York, eu já não estava dando muita bola porque peguei o filme na metade e a Liza Minelli já estava toda chorosa sei lá por quê.

(Eu avisei, eu lembro de tudo.)

Toca o telefone, meu pai atende. Ele desliga, diz que minha prima sofreu um acidente de carro, feio. Ele é assim, nunca diz que alguém morreu, sempre manda a pessoa pra cima do telhado primeiro. Toca o telefone de novo, ele confirma para a gente o que aconteceu. 23 anos. Minha mãe começa a fazer as malas. Eles vão ao enterro, em Minas, e eu não vou. Eu vou para a casa do meu primo, a um quarteirão de casa. Meu primo é casado, eu vou ficar com a mulher dele (um amor de pessoa) e o irmão dele, meu outro primo. Meu primo Outro é doze anos mais velho do que eu, já tinha morado no Rio e nós éramos super amigos, saíamos sempre juntos. Agora ele estava de visita, mesmo porque tinha namorada no Rio, e estava ficando na casa do irmão e da cunhada. Mas o primeiro primo (isso tá ficando complicado, mas não vejo por que colocar nomes nessa droga de história), o casado, também estava indo no enterro.

Na casa onde eu ia ficar estavam hospedados também um casal de amigos dos meus primos (amigos nossos também), do Espírito Santo. Fiz minha mochila: um pijama, uma calcinha, uma camiseta daquelas que a gente só usa pra andar um quarteirão mesmo. Fui com a roupa que estava. Cheguei lá, a casa estava um freje: as mulheres (a esposa do meu primo e a visita) passando batom pra lá e pra cá, arrumando-se, os homens vestindo-se também. O apê tinha um quarto só, parecia que era um monte de gente. Eu vi o movimento, pensei: ê, beleza, vão sair pra jantar, no problem, eu fico aqui, faço um ovo frito e assisto mais televisão. Óbvio. O que mais eu ia pensar?

Pois pensaram por mim. Cinco minutos antes da hora de sair, vêm com a novidade: Heloisa, a gente vai jantar na casa da Fulana, você vem com a gente! Hein? Como assim???? Fulana era a namorada do meu primo. E eu me sentindo um liiiiixo, matéria decomposta das palmeiras imperiais. Tomo um banho, visto a mesma blusa (éca), a mesma bermuda, e vamos lá. Chega lá está a Fulana arrumada “nas úrtima”, como dizem em Sorocaba, com um vestido branco de frente única, curto, uns saltos altíssimos, maquiagem daquelas que você vê que foi feita com toda a boa vontade do mundo, e perfume. A desculpa do jantar é mostrar o novo apartamento. Eu gostava dela à beça. Reconsiderei quando soube o que ia ser servido: bobó de camarão. Ah, não vai dar, Fulana, eu sou alérgica. Toca a providenciar comida pra mim. A única coisa que ela tinha em casa: salsichas viena, as pequenininhas, sabe? Com o arroz. Tenho que ensinar aquela mulher a fazer arroz. Eu estava me sentindo o último dos seres vivos.

Hora de ir pra casa: meu primo (se vocês repararam só sobrou um primo no Rio, tem que ser este) vai levar o pessoal em casa: eu, a cunhada dele, o casal de amigos. Quando estamos na garagem, a Fulana diz na janela do carro: querido, você esqueceu sua carteira lá em cima! E ele: ah, tudo bem, depois eu pego. Eu pensando pô, que legal, que desprendimento das coisas materiais!

O carro parou em frente ao prédio, todo mundo saltou, meu primo continuou ao volante. Não esperem por mim!, disse. Eu quase morri. Eu não sei se estava com mais raiva por ciuminho do meu primo ou pelo machismo vigente na família. Fosse uma prima, seria o fim da picada, seria o escândalo, seria a vergonha. Ele, não: não esperem por mim, a coisa mais natural do mundo. Subimos, pijama, dormir na cama de casal com a minha prima (mulher do meu primo, pô, facilita, né?). Nem sei onde o outro casal passou a noite, acho que foi na casa de outros amigos. Foi uma noite horrível. Não lembro se fazia calor ou se fazia aquele frio-com-barulho de ar-condicionado, bem alimentada eu sei que não estava, dormia mas não conseguia desligar. Sonhava com minha prima, o acidente de carro, ouvia a voz dela. Acordava, ia beber água, via a cama do meu primo arrumada, vazia, ficava furiosa, tentava dormir de novo.

Dia seguinte, acordo, não me lembro onde almoçamos, terá sido no Caneco 70? Sei que a tarde toda passamos lá, eles tomando chopp, eu refrigerante. Meu primo e Fulana reapareceram magicamente. Vários chopps, as histórias foram ficando cada vez mais engraçadas, eu ri muito. No meio da bebedeira, todo mundo repetia: ei, não vai contar nada pro seu pai, hein? Agora é meio tarde, já faz tempo e essas histórias eu esqueci.

Finalmente, já tinha anoitecido, me levaram de volta pra casa. Meus pais tinham chegado, cansadíssimos. Ajudaram nos preparativos lá em Minas, dormiram no carro só por uma hora. Foram dormir direto. Deviam ser o quê? Oito da noite?

Pra piorar tudo caía aquela chuvinha fina que não vai nem vem. Bateu uma depressão louca. Ligo para a amiga número um, ninguém em casa. Amiga número um bê, ninguém em casa. Outra, ninguém em casa. Ligo pra ele. Um amigo. Bonitinho, da minha turma, eu sabia o telefone de cor, ele era gente boa.

– Alô? Oi, tudo bem? Aqui é a Helô, eu tô deprimida…

Começo a contar toda a história acima, mas com raiva e chorando. No final me desculpo: foi mal! Obrigada por me escutar!!! Chorando ainda.

– Heloisa? Vai tomar banho, Heloisa! Amigo é pra isso, pô!

Ele não deve se lembrar. Mas eu lembro.

Alguém aí tem o email dele???