Chovendo na roseira

E o esquecer era tão normal que o tempo parava.

Existe uma cidade em Minas que é a minha Macondo e uma certa fazenda onde moram os meus Buendía. O caminho para lá é sempre barrancos, pasto verde, curvas com histórias, falta muito?

O tempo na fazenda devia ter parado mas não: o fogão a lenha virou fogão industrial, cimento queimado virou ladrilho, suco de carambola virou coca-cola no café da manhã, o sertanejo virou pop, cavalos viraram motos e a casa se divide em quartos estranhos. Permanecem as roseiras, o incontrolável arbusto de rosa-chá, os gatos ariscos, os cachorros desenxabidos e o eterno morango de cerâmica.

As roseiras circundam a casa e nelas todos põem atenção – esta variedade era a preferida do bisavô, aquela da outra avó. Lá nos fundos, perto da piscina, longe da casa e quase totalmente coberta por uma folhagem tropical, fica a roseira de rosa-chá. Flores claras e pequenas, galhos indomáveis, sem espinhos, os montes de flores secas pedindo para serem arrancadas no primeiro nódulo, obsessivamente: tec-tec-tec.

Já vim para cá pequena, moleca, taluda, namoradeira, formada, casadoira, campineira, americana, desempregada, separada, segura, genealógica, urbana, mas sempre estranha. Nada do que sei ou sou vale de algo aqui. Perco totalmente a  identidade. Não tem internet, não tem conta pra fazer, não tem celular, não tem simplicidade voluntária, não tem amizade, chope, namoro. Aqui sou só a mulher esquisita que não cozinha, não dirige e não tem filhos.

Quantos anos você tem? Trinta e quatro? Ainda dá tempo de dar uma cria. Fuga para a rosa-chá: tec-tec-tec.

E a chuva. Não parou de chover um minuto. Minto: o par de horas de estiagem trouxe a visita dos primos, súbitos adultos, universitários, conversando namoros e dramas acadêmicos para me distrair. Depois disso, mais chuva. A chuva mais longa de que eu me lembro.

Conto isso tudo não é para me lamentar não, mas para me explicar. Dá um pouco de raiva, insisto em não me definir por eles, e ao mesmo tempo quero mostrar que não sou só a safada-cosmopolita que uns imaginam a partir das coisas que falo justamente para parecer interessante. Sou também esse buraco, esse vazio, essa falta de lugar. Sou a moça que correu pra rosa-chá: tec-tec-tec.

Para ouvir: Fazenda
Para ver e ouvir: Chovendo na roseira (via @elesbao)
Para ler: Lisbon Revisited (1923) e Lisbon Revisited (1926)