Ok, então nós podemos falar mal dos americanos, porque eles são capitalistas nojentos, ignorantes, neuróticos e patéticos, certo? E todos eles votaram no Bush, claro. E apóiam incondicionalmente o seu presidente.

Vamos também falar mal, mas bastante mal, ofensivamente mal, dos argentinos. Nenhuma ofensa é forte o bastante para eles, que são metidos, arrogantes, violentos no futebol e nossos eternos rivais. Certo?

Pra mim tá errado. Não sei por quê. Tenho a impressão – vai ver que eu é que estou errada – de que isso é ódio. É generalizar. É ser ignorante, no sentido mais abrangente da palavra: ignorar as exceções, por exemplo. Se quisermos, sempre teremos uma desculpa pra falar mal dos outros países. Mas isso é sentar no rabo e achar que o Brasil é o melhor de tudo, ou não: podemos também falar mal dos outros e falar mal de nós mesmos, destilando até a última gota de veneno e amargura. Sem dispensar, claro, aquela dualidade maravilhosa, que nos permite falar mal de umas coisas e exaltar outras desbundadamente, como se as qualidades e os defeitos de uma pessoa, de uma família, de um país ou o que quer que seja não estivessem costurados todos juntos num embolado só.

Eu é que tô cismada, deixem pra lá.

Lembrei aquela vez que minha mãe foi me ver em Campinas. Eu disse: “Mõe, tô apaixonada!”. Depois que falei, achei que não tinha que ter falado. Eu estava comprando uma briga gigante com o meu pai naquela época, minha mãe como sempre no meio, de pára-raios, por quê ela quereria saber se eu estava apaixonada? Mas ela respondeu “Que bom, minha filha!”. “Como assim, ‘que bom’???”

E a resposta dela:

– A vida é muito difícil pra gente não estar apaixonada. Estando, ajuda.

Minha mãe é o máximo.

Eu botei o cozinheiro (nosso timer) pra 30 minutos de internet. Aí eu olhei tudo o que eu tinha que olhar. Aí eu fui buscar uma foto do cozinheiro. Não achei. A essa altura eu já tava escutando a rádio Giulieta, coisa de primeira. Aí eu fui pajear criança lá no Mothern. Já passou 1 hora e 14 minutos, eu tô aqui de biquíni, tá sol lá fora, mas agora eu já tô com vontade de almoçar. Acho que vou comer qualquer trem e vou tomar sol. Na volta eu almoço e arrumo a zona do quarto antes de o Gastón chegar.

Eu quero aprender a administrar meu tempo!

Vou levar o cozinheiro pra piscina pra ver se eu não me distraio lendo a Gabriela e fico vermelha de um lado e amarela do outro, tipo palito de la selva.

PS: Fiquei mais alguns minutos aqui procurando o tal palito de la selva, que eu mesma nunca vi. Não achei. É um doce que tem lá na Argentina que de um lado é morango e doutro baunilha, e é como o Gastón chama aqueles manés (que nem eu) que se bronzeiam de um lado só e ficam com aquela divisão maravilhosa na lateral da perna.

Tem palm? Então corre pra fazer download dos programas pra acompanhar a copa. O melhor é o Worldcup 0.6, mas o Copa 2002 apresenta os jogos no horário de Brasília.

PS: Depois vi que o Worldcup permite mudar o fuso horário…

SERMÃO DA PLANÍCIE (para não ser escutado)

     Bem-aventurados os que não entendem nem aspiram a entender de futebol, pois deles é o reino da tranqüilidade.

     Bem-aventurados os que, por entenderem de futebol, não se expõem ao risco de assistir às partidas, pois não voltam com decepção ou enfarte.

     Bem-aventurados os que não têm a paixão clubista, pois não sofrem de janeiro a janeiro, com apenas umas colherinhas de alegria a título de bálsamo, ou nem isto.

     Bem-aventurados os que não escalam, pois não terão suas mães agravadas, seu sexo contestado e sua integridade física ameaçada, ao saírem do estádio.

     Bem-aventurados os que não são escalados, pois escapam de vaias, projéteis, contusões, fraturas, e mesmo da glória precária de um dia.

     Bem-aventurados os que não são cronistas esportivos, pois não carecem de explicar o inexplicável e racionalizar a loucura.

     Bem-aventurados os fotógrafos que trocaram a documentação do esporte pela dos desfiles de modas, pois não precisam gastar tempo infindável para fotografar o relâmpago de um gol.

     Bem-aventurados os fabricantes de bolas e chuteiras, que não recebem as primeiras na cara e as segundas na virilha, como os atletas e assistentes ocasionais de peladas.

     Bem-aventurados os que não conseguiram comprar televisão a cores a tempo de acompanhar a Copa do Mundo, pois, assistindo pelo aparelho do vizinho, sofrem sem pagar 20 prestações pelo sofrimento.

     Bem-aventurados os surdos, pois não os atinge o estrondar das bombas da vitória, que fabricam outros surdos, nem o matraquear dos locutores, carentes de exorcismo.

     Bem-aventurados os que não moram em ruas de torcida institucionalizada, ou em suas imediações, pois só recolhem 50% do barulho preparatório ou comemoratório.

     Bem-aventurados os cegos, pois lhes é poupado torturar-se com o espetáculo direto ou televisionado da marcação cerrada, que paralisa os campeões, ou do lance imprevisível, que lhes destrói a invencibilidade.

     Bem-aventurados os que nasceram, viveram e se foram antes de 1863, quando se codificaram as leis do futebol, pois escaparam dos tormentos da torcida, inclusive dos ataques cardíacos infligidos tanto pela derrota como pela vitória do time bem-amado.

     Bem-aventurados os que, entre a bola e o botão, se contentaram com este, principalmente em camisa, pois se consolam mais facilmente de perder o botão da roupa do que o
bicho da vitória.

     Bem-aventurados os que não confundem a derrota do time da Lapônia pelo time da Terra do Fogo com a vitória nacional da Terra do Fogo sobre a Lapônia, pois a estes não visita o sentimento de guerra.

     Bem-aventurados os que, depois de escutar este sermão, aplicarem todo o ardor infantil no peito maduro para desejar a vitória do selecionado brasileiro nesta e em todas as futuras Copas do Mundo, como faz o velho sermoneiro desencantado, mas torcedor assim mesmo, pois para o diabo vá a razão quando o futebol invade o coração.



Carlos Drummond de Andrade, in: “Boca de Luar“.

Outro texto que eu estava querendo publicar nestes últimos dias. Acho que era uma propaganda da Mesbla, que saiu na Veja antes de 89 (e eu recortei!). Amanhã é feriado aqui, o Memorial Day, dia de louvar os valorosos veteranos de guerra e, mais importante ainda, o começo oficial do verão.

Chegou o verão, e há o que sempre houve: casais que estremecem, confusões conjugais e extra, ansiedade esparsa, caju e abacaxi, viagens bruscas, suaves delíqüios, telefonemas esquisitos, noitadas vãs. Tudo isso é o verão, e o verão é a verdade do sol. Queimam-se as mulheres. Umas se fazem cor de cobre, outras se doiram, em outras repontam discretamente sardas ao longo do corpo, como estrelas ao crepúsculo. Reparem bem esta comparação: é obviamente ruim mas é tipicamente de verão, e o verão em si não é mau, nem bom, é a nossa profunda, verdadeira verdade.

Rubem Braga.

Cantiga de Amigo

Hoje foi dia de arrumar a casa. Achei os textos que eu achava que não tinha trazido do Brasil mas tinha. Este aqui eu tirei de um livro de literatura, naquela parte que fala das cantigas de trovador e cantigas de amigo, e prova que amor à distância não é tão novidade quanto possa parecer…

Cantiga de Amigo

Com esta saudade, amigo,
que me faz triste e coitada,
já não vivo, e bem vos digo:
que seja a vossa morada,
amigo, onde me possais
falar, e onde me vejais.

Não posso, onde não vos vejo,
viver, bem o podeis crer;
e é tão grande o meu desejo
que peço: vinde viver,
amigo, onde me possais
falar, e onde me vejais.

Nasci num dia fatal:
por Deus, amigo, abrandai
a minha pena e meu mal;
eu vos suplico: morai,
amigo, onde me possais
falar, e onde me vejais.

– Senhora, eu irei morar
onde quiserdes mandar.

Apud C. Berardinelli. Cantigas de trovadores medievais em português moderno, p. 53.