Ela pode sentir nos ossos a chuva chegando. Ela sabe que algo não está
bem mesmo antes de ouvir o trovão. O relâmpago ela mesma faz, a caneta
preta, num dos tantos cadernos. Desenha, escreve, recorta, sorri. Fuma
mais um pouco e escuta a madrugada. Devota ser quem é ao homem que vai
chegar daqui a pouco, entrar pela porta, dizer coisas profundas por
ofício e nonsense por diversão. Parou de beber na semana passada, de
novo. Toma um café. Olha o chapéu azul e grava umas fitas, escreve
qualquer coisa em caracteres cirílicos, deixa a foto provocante
rolando na internet e espera o sol que já envém.
Onde não diremos nada, nada aconteceu
Disse e vou dizer de novo: eu te amo. Essa frase repetida tantas
vezes em momentos enrolados, safados ou ternos, ainda sai da minha
boca em só pensar no seu gesto e cheiro. Já não me lembro como era o
passado em que não te amava, em que não tinha a sua compreensão e
atenção completas. Tampouco posso imaginar o futuro distante – mas
inevitável – em que não direi mais eu te amo, porque o resquício de
amor não será o suficiente para encorajar as palavras. Por isso me
incorporo no escuro, para dizer a você que te quero, te entendo, te
sou, te tenho completamente no presente. E amo.
É que eu tô…
Faz nove meses que fecundei a barriga de um avião com meus pertences e presença. Agora é hora de parir a mim mesma, dando-me à luz brasileira. Feito os partos não-metafóricos, houve trauma, sustos e um pouco de dor, mais um tanto de respira e empurra.
Difícil a gente se tornar o que já deveria ser.
Meu amor, você me dá sorte!
Acredito quase magicamente nos meus amuletos de predileção, a saber:
– hamsa
– Nossa Senhora de Guadalupe
– qualquer coisa cantada pela Nina Simone
– verde com rosa
– roxo com amarelo
– wasabi
– Menina Amanhã de Manhã cantada pela Mônica Salmaso
– namorados taurinos
– minha mãe me chamando de Burunga
– chá de camomila ou hortelã
– Nescau
Qualquer combinação de dois ou três desses itens já me ajuda a viver e enfrentar. Muita sorte mesmo.
Tem poli no samba
Adivinhe coração.
Custódio Mesquita/Evaldo Ruy
Gravado por Marcos Sacramento em "Sacramentos".
Adivinhe coração
A quem é que estou amando
De quem é que estou gostando
Por quem é que estou sofrendo
Adivinhe coração
Adivinhes se és capaz
que a saudade não me deixa
Vê se atende a minha queixa
que eu não posso mais
Não é possível ter amores aos milhões
Era preciso que eu tivesse outros tantos corações
Porque um só não é capaz de abrigar tantos afetos
Amo tanto a tanta gente
Tenho tantos prediletos…
O que há de bom
Coisas bonitas guardadas na memória.
– A tempestade de raios sobre o mar de Guarapari, vista da janela do minúsculo apartamento.
– O casal estudantes de música meio hippies cantando “Marinheiro Só” em frente à faculdade.
– O meu vestidinho marrom que minha mãe insistiu em jogar fora porque não agüentava mais ver.
– O saxofonista no bar tocando abraçado à esposa parecida com a Sônia Braga.
– O sol da tarde entrando pela janela do apartamento da Mariana.
– O cheiro de flor de manga na janela do meu apartamento.
– O reflexo da chama do isqueiro no metal no escuro.
– O arranjo de frutas na mesa de Natal.
– Meu avô dançando valsa comigo no sofá da sala.
– Os adolescentes no ônibus em polvorosa ao ver uma noiva.
Entre tantas outras.
Eu não ligo para os ursinhos polares.
É isso. Dia da Terra e eu não consigo pensar na Terra de que todo mundo fala, dos documentários longínqüos da National Geographic, dos viajantes de quem tenho inveja e dos ursos polares.
Quando penso em meio-ambiente me encantam mais as questões cotidianas dos mais de 50% da população mundial que vivem em cidades, como eu. A minha vida ideal numa cidade inclui transporte público eficiente, moradia para todos, um sistema de distribuição de água e tratamento de esgoto eficiente e sustentável, coleta de lixo regular e aterros sanitários bem administrados, uma cidade limpa em todos os sentidos – sem poluição visual e sonora, além das óbvias.
Principalmente, é necessário que cidadãos conscientes façam a sua parte, levando uma vida simples, agindo e interagindo para que todos tenham uma vida melhor.
– Compre menos coisas. Muito menos.
– Desligue a televisão. Não preste atenção nos anúncios. Vá fazer outra coisa.
– Tire o ar-condicionado do modo “geleira”.
– Economize água.
– Dirija menos. Ande, pegue o metrô ou o ônibus, use sua bicicleta ou divirta-se mais perto.
– Brigue com o descartável. Use sua canequinha.
– Discuta. Reclame. Exponha sua opinião.
– Calcule sua pegada ecológica.
O que mais você quer/está disposto a fazer? Deixe um comentário!
Noveau Cariocaise
Sabemos que as línguas evoluem, que gírias supimpas ficam velhas, que ter um affair com deliciosos rendezvous na garçonière ficou demodé há muito tempo. Um amigo me avisou que isso seria um problema, que quando eu voltasse ao Rio não entenderia nada, que ele mesmo ria e assentia com a cabeça quando os papos viravam para vocábulos ininteligíveis.
É o meu caso agora. Desde quando se tem “preguiça de alguém”? “Formou?” “Partiu?” “Acho digno”, “acho chique”. “Eu sou brasileira, não desisto nunca!” “Peguete” e “periguete”. “Carão” e “climão”.
E como “quem tem amigos não passa mal” (essa é velha), eu sempre descubro o que essas coisas significam cochichando com a pessoa ao lado discretamente. E assim vamos vivendo, à custa de muitas palavras…
Saí por aí um dia com uma bolsa grande cheia de palavras. Eram de todos os tamanhos, desde os menores suspiros e gemidos de duas letras até big words e longas reflexões. Vinham todas emaranhadas, se agitavam pesando enquanto eu andava, até que resolveram flutuar sobre minha cabeça qual fumaça de trem, faziam redemoinhos, eu andava mais rápido e aí era a cabeleira de Berenice (ou Clarice?). Os pombos da praça e as estátuas mesmo paravam a prestar atenção na mulher cujas palavras até faziam vento nas folhas. Parei perto do metrô num subsolo para tomar um café e elas se aquietaram um pouco ao encontrar o teto. Não por muito tempo. Quando sentei se moviam junto à pequena mesa como cães malcriados e eu já exasperada porque as mesmas benditas que tanto frisson faziam não me acudiam à boca nem para conversa pequena, deixando meus olhos sós sem substância a ser adivinhada. A mesa quase virava com o guaraná e o café e elas finalmente dormiram a meus pés aninhadas feito agora cão guia perfeitamente adestrado, não me toquem, estou a trabalho. Fiquei um pouco mais ali, colhi palavras novas, fiz um novelo, botei de volta na bolsa. Vim pelo metrô em paz e agora tenho um pequeno cachecol.
Da janela vejo o Corcovado…
Foto: djivanlp
As janelas alheias têm algo que me encanta deveras. Um Cristo
fantasmagórico faz-que sobe o monte onde está plantado e abençoa
não só os meus seis meses de Rio mas também todas as estrepolias, o
vinho, o papo entre amigos e o cordeiro divino do almoço de aleluias.
Sempre foi assim. Outros apartamentos me transferem a outras vidas e
dimensões. Me agrada escapar às vezes.