Saí por aí um dia com uma bolsa grande cheia de palavras. Eram de todos os tamanhos, desde os menores suspiros e gemidos de duas letras até big words e longas reflexões. Vinham todas emaranhadas, se agitavam pesando enquanto eu andava, até que resolveram flutuar sobre minha cabeça qual fumaça de trem, faziam redemoinhos, eu andava mais rápido e aí era a cabeleira de Berenice (ou Clarice?). Os pombos da praça e as estátuas mesmo paravam a prestar atenção na mulher cujas palavras até faziam vento nas folhas. Parei perto do metrô num subsolo para tomar um café e elas se aquietaram um pouco ao encontrar o teto. Não por muito tempo. Quando sentei se moviam junto à pequena mesa como cães malcriados e eu já exasperada porque as mesmas benditas que tanto frisson faziam não me acudiam à boca nem para conversa pequena, deixando meus olhos sós sem substância a ser adivinhada. A mesa quase virava com o guaraná e o café e elas finalmente dormiram a meus pés aninhadas feito agora cão guia perfeitamente adestrado, não me toquem, estou a trabalho. Fiquei um pouco mais ali, colhi palavras novas, fiz um novelo, botei de volta na bolsa. Vim pelo metrô em paz e agora tenho um pequeno cachecol.
Da janela vejo o Corcovado…
Foto: djivanlp
As janelas alheias têm algo que me encanta deveras. Um Cristo
fantasmagórico faz-que sobe o monte onde está plantado e abençoa
não só os meus seis meses de Rio mas também todas as estrepolias, o
vinho, o papo entre amigos e o cordeiro divino do almoço de aleluias.
Sempre foi assim. Outros apartamentos me transferem a outras vidas e
dimensões. Me agrada escapar às vezes.
Valsa de uma cidade
Depois do último post várias pessoas me vieram contar sobre sua relação com o Rio. Eu, por minha vez, descobri que minhas casas são mesmo as pessoas. Esta é a primeira vez que me mudo sem ser à moda caramujo. Por pudores de falar sobre tais casas onde me aninho e colos onde faço morada – assunto para quando tiver mais coragem e idéias organizadas sobre salas de estar, cozinhas e sobre correr nua por corredores – vou falando dos lugares por onde passo e descrevendo as descobertas de meu namorinho com o Rio.
Hoje a aventura foi sair pelo Centro em busca de amarras invisíveis (fios de nylon, para os menos poéticos). Surpreendentemente achei meus caminhos auxiliada pelas instruções de jornaleiros e do senhorinho simpático da Papelaria Charme do Castelo. Cheguei ao destino e o rádio da Casa Cruz anunciava com a voz da Bethânia “…então tá tudo dito e é tão bonito e eu acredito num claro futuro…”. Ultimamente até as cartas de tarô debocham de mim, por que não o rádio?
Achei o que procurava. Voltei feliz e encontrada, adivinhando nas esquinas, ruelas e portas de lojas um Rio intrincado, bonito, misterioso, contraditório e apaixonável, de que posso usufruir com calma sem necessariamente me dispor a comprar a escritura de um comércio na rua da Alfândega. Tudo o que eu queria.
Esta é a nossa casa
Não importa quantas vezes eu retorne, o Rio sempre me trata como uma estranha. Andar na praia evidencia especialmente essa má-vontade por parte dele. Não tenho a beleza morena das garotas do Leblon, o dinheiro em férias dos gringos em Copacabana, nem a alegria domingueira dos que vêm do subúrbio. Hoje, por exemplo, o mar rugiu impropérios e a areia tinha conchas quebradas e moscas que se levantavam ao meu passo, enquanto as nuvens conspiravam uma chuva de anoitecer. Só me restou comprar um côco ao quiosqueiro mal-humorado e pegar o ônibus de volta ao bairro das calçadas que pisei mais de mil vezes.
Em se tratando de bares, claro, a coisa muda de figura. Satisfação quase garantida, ainda mais quando se tratam de pessoas dispostas e jogar conversa fora. Calha às vezes de me sentir de novo figura agregadora: sexta passada, 14 gentes, todas brotadas da internet mas uma só que ainda não conhecia ao vivo e em cor. Risadas, fotos a la orkut (agora fazendo biquinho!) e a promessa de novos encontros. Com poucas cervejas já falo pequenas bobagens de que me arrependo um pouco, mas nada de ressacas morais ou hepáticas, já não estou na época. Existe vício em contato social?
O Rio me nega aconchego em suas praias, mas em seus botecos "ele me abre seus braços e a gente faz um país"…
Das três, quatro.
Das duas, uma: foi decisão ou foi distração. Se foi distração – o menos provável – foi bom mesmo ter acontecido. Não estou disposta a pessoas distraídas, desses já tenho lá em casa. E se foi decisão só me resta acatar o seu livre arbítrio. Em todo caso: decepção.
Tá. (Breathing in)
Blue Nude I, Henri Matisse, 1952
Atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu
Agora, sim, objetivamente. Passei um carnaval absurdamente divertido. Fui a alguns blocos, já que – dizem – houve um renascimento do carnaval de rua do Rio de Janeiro nos últimos quatro anos. Não brinca!
Brincam uns dez blocos por dia em toda a cidade, e as pessoas nem pensam mais em viajar, e assim as ruas ficam cheias. Programa de índio, mas quem não quer viver pelado pintado de verde uma vez na vida? Se por um lado as almas mais sensíveis reclamam do calor, da chuva, das pessoas suadas, dos ambulantes e suas cervejas nem sempre geladas, da falta de banheiros químicos, do trânsito infernal e de eventuais furtos (carteira, celular e câmera, pra começar), por outro lado há animação de sobra, fantasias divertidas, um clima em geral pacífico, gente bonita (o bloco no Jardim Botânico e o de Santa Teresa foram campeões nesse quesito, o da Lapa também não fez feio), marchinhas antigas, plumas-paetês-e-glitter, confete-e-serpentina, e uma sensação de redescoberta do Rio.
As amigas e seus amigos e os amigos desses constituíram uma turminha que, ao serpentear entre a multidão, me deu mais vontade de sair pulando por aí e me deixou mais "soltinha" (no meu parecer) ou "descontrolada" (no de outrens). Domingo teve dois blocos e quase que o ônibus da cantoria nos leva ao terceiro. Terça foi o dia do maior exagero: foram doze horas de folia. Considerando que eu já estou além da média de idade da juventude carioca bem-nutrida, a minha sobrevivência – atestada neste post – é motivo de orgulho. O ano começa bem e há ainda algum brilho em minha vida.
Seja você quem for, seja o que Deus quiser.
Vinha pensando em alegorias e segredos, em blocos e confetes, mas a turba ensandecida de meus pensamentos só largou de seguir (ou antecipar) o trio elétrico na quarta-feira de cinzas. Quem sabe agora há sobriedade para expressar o que eu sinto.
Sobre o carnaval mesmo conto depois, mas a propósito da época surge a alegoria perfeita: se palavras são máscara, blog (twitter, orkut, msn…) então é fantasia completa. Há tempos me disfarço em escritas crípticas e agora noto que não sou só eu. Não espero que me decifrem aqui, então também não tento adivinhar o outro embaixo da fantasia de pirata, pierrô ou arlequim, sob o perigo de me enganar redondamente e ser enrolada como serpentina. Vamos combinar que o sem-legendas é privilégio de poucos, o resto é intuição e bruxaria. Carece às vezes de palavras adultas e diretas e do despir de adereços.
Hashivenu
Hoje eu andei a esmo. Acontece. Eu quase não tenho senso de orientação, vivo me perdendo, a menos que olhe bem num mapa ou peça instruções à minha mãe. Nem me importei, segui andando. Acabava de sair de um ponto final, mas um ponto final um tanto quanto anticlimático. Um rabisco num papel mais ou menos fecha uma história longa e difícil. Assim tão fácil? Às vezes a gente espera mais fanfarra da vida, e ela não te dá. Já experimentou jogar algo durante uma briga, quebrar tudo pelo efeito dramático? Não funciona, eu já tentei. Dá mais raiva aquele barulho choco no chão. Mas divago. O caso é que devagar andei para longe desse final e por acaso cheguei ao começo. O prédio do CCBB estava bem ali, queria mesmo prestar uma visita ao meu velho amigo, entrei. Fui me sentar justo nos degraus onde, manual de vestibular em mãos, fiz um início. Parece que o meu andar a esmo tinha sido não o desta tarde, mas por mais de uma década, como se eu estivesse andando num grande círculo, como a rotunda, como o campus da Unicamp, como uma tribo kraó, eu andei vagarosamente e cheguei ao ponto inicial. Chorar em público já não é mais vergonha, chorei devagar sem enxugar as lágrimas e tentando descobrir o que é mesmo que me incomodava, ou se nem era incômodo, se era só catarse. Descobri que a minha briga é com o conceito de permanência, retorno, fluidez, todas essas coisas muito difíceis de definir. O prédio, sua luz e sua rotunda, é o mesmo, mas será? Eu sou a mesma e não sou, nunca fui filosófica, por que agora? Porque agora eu, rio, descubro para onde vou. A esmo.
Foto: Kênia Castro