O que que ela tem que eu não tenho?

Foto por The Rocketeer, do Flickr.
Já falei várias vezes aqui sobre a minha opção pela simplicidade voluntária e o singelo apelido “carmelita descalça” pelo qual minha família me chama.

Cada vez mais tenho notado quão incomum é minha opção de não ter ou não usar certas coisas que são corriqueiras na vida das outras pessoas. Aqui vai uma lista das que lembro agora.

Televisão – Desde março de 2006 que não tenho uma televisão para chamar de minha.  Assisto a seriados, mas quase nada de tv aberta. É impressionante o quanto isso me isola de algumas conversas. Antes eu tinha a desculpa de ter passado tempo fora do Brasil, mas já voltei há 3 anos, a desculpa caducou. Fora a inquestionável falta de qualidade da programação, percebo outras desvantagens de ter uma televisão: nos acostumamos com barulho demais, velocidade demais, propaganda demais, periféricos demais (não tenho vídeo, dvd, videogames), contas demais (tv a cabo, locadora), e até a disposição dos móveis da casa muda. Uma sala de tv é praticamente uma capela, e num conjugado isso pode ser um problema logístico.

Apartamento grande – Estou morando num conjugado alugado. A sala é o quarto, a cozinha é uma parede, e somando o banheiro não dá mais que 25 m2. São poucos móveis e está confortável assim. Cabem minhas coisas e se eu quiser comprar um sofá ainda tem espaço, assim como tem espaço sobrando nos armários sobre e sob a pia da cozinha. Por outro lado, ainda dá pra diminuir mais ainda a quantidade de papéis e roupas, estou trabalhando nisso. E sou um pouquinho cara-de-pau, ainda tem umas roupas de inverno na casa da minha mãe (a dois quarteirões) que pretendo recuperar em breve, e as minhas malas grandes que vão continuar lá enquanto ela permitir.

Fogão – O apartamento é realmente pequeno e um fogão ia arruinar os meus sonhos de decoração clean. Aboli o trambolho já sabendo que não sou nenhuma Ofélia e que posso cozinhar na casa dos meus pais ou do namorado. O microondas, o grill e a cafeteira dão conta do recado e me poupam de ter em casa um totem de culpa.

Carro – Não dirijo, ando de ônibus, metrô e táxi. Tem quem ache muito estranho, mas já está provado que as despesas com um carro ultrapassam, em muitos casos, o que se gastaria apenas com táxi.

Telefone fixo – Cancelei esta semana uma linha fixa em meu nome que ficava na casa dos meus pais e que foi comprada na época da concessão caríssima. Eles ofereceram para transferir para o meu apartamento e eu achei que o preço da transferência e as eventuais chateações com a operadora não compensariam.

E, claro, coisas menores, entre elas:

Secador de cabeloQue cabelo?

iPod – Tecnicamente eu tenho um, mas está emprestado.

Jornais/Revistas – Raramente compro revista (de decoração ou a Vida Simples) e nunca compro jornal. Reconheço que são leituras prazerosas para quem tem o hábito mas meu vício é mesmo o Google Reader.

Qualquer dia faço um post dizendo o que é que eu tenho, além de caraminholas na cabeça. E vocês, conseguiriam viver sem o quê?

Mas seja educado, diga “não, obrigado”

Recebo muitas mensagens que na verdade são para minhas xarás. Coisas inacreditáveis: orçamentos, trabalhos de faculdade, anúncios de reuniões, fotos de casamento. Este é o email que eu mando em resposta, usando o recurso “canned response” do gmail. O parágrafo “se você enviou” eu só mando na segunda vez que a pessoa infringe com lista aberta. Pra envergonhar.

Olá!

Este endereço de email não pertence à Maffalda que você queria contactar.

Isto significa que a sua mensagem não chegou à minha xará.

Se você enviou esta mensagem para uma lista aberta de amigos, isto também significa que agora todos eles pensam que eu sou a Maffalda que vocês conhecem, e eu provavelmente vou receber emails de outras pessoas por causa disso. Esta é uma das razões para sempre usar a linha de endereçamento oculto (bcc: ou cco:) quando enviar mensagens a um grupo grande de pessoas.

Por favor verifique o email correto da Maffalda que você conhece, reenvie a mensagem, e retire meu endereço da sua lista.

Muito obrigada,

Maffalda
Rio de Janeiro, RJ

Tem também aquele parente que sempre manda mensagens edificantes, piadinhas e correntes. Nesse caso, o método é um pouco mais delicado:

[Fulana],

Esqueci de comentar que fiquei sabendo do vestibular do seu filho, você deve estar orgulhosíssima! Eu fiquei! [Pedaço em que você comenta amenidades e estabelece um contato simpático.]

Vou adorar receber notícias suas de vez em quando, mas quanto aos emails encaminhados (piadas, mensagens inspiracionais, correntes [escolha o tipo favorito de spam da pessoa]), eu preferiria ser excluída da lista. A maioria deles eu nem abro, para prevenir vírus [porque estou sem tempo/porque o email é do trabalho/porque não gosto]…

Um beijão,
Maffa.

Aí hoje eu fui abrir meu email ligado à conta do msn e eis que, no meio de todos os vírus e spams eu vi algumas mensagens de amigos que realmente pensam que eu uso aquela joça. Alguns mandam piadas, então dei um jeitinho de insinuar que isso não será tolerado na minha conta principal:

Queridos,

Por favor não mandem email para …@hotmail.com, só uso esse endereço para o msn e abro as mensagens umas duas vezes por ano! Lá só tem spam, vírus, piadinhas, correntes e ppts, não tenho o menor interesse nessas coisas!

Estou escrevendo para dizer que a única conta que eu leio com freqüência é esta, …@gmail.com. Notícias, fotos, lembranças e declarações de amor serão muito bem vindas.

Beijos,
Maffalda

Etiqueta, delicadeza e canja de galinha não fazem mal a ninguém…

Tia Zilah

Meu pai menino veio do interior para o Rio morar com uma tia cujos filhos já estavam crescidos. “Preciso de companhia”, ela disse. Eram todos galalaus e a única moça era a mais velha, metida com políticas. Para o assombro do primo do interior, queimavam-se papéis e livros do Partido Comunista no auge da repressão, com um lençol protegendo o relumejar da chama dos olhares dos vizinhos e a descarga funcionando a noite inteira para se livrar das cinzas. A minha tia Zilah leu os jornais diários e teve uma opinião sobre tudo até anteontem, quando faleceu no Rio, aos 94 anos.  Não encontrei, óbvio, nenhuma prova de que ela tenha sido do Partidão.

Descanse em paz, tia Zilah.

(Mulheres extraordinárias nascem de mulheres extraordinárias.)

Envelheço na cidade

Hoje este blog faz 9 anos.

Quem começou a escrevê-lo foi uma outra Maffalda que achava que já sabia bastante e sempre teve vergonha de escrever diários. O blog registrou minha vida abertamente primeiro, e depois de forma um tanto críptica, e nos últimos três anos muito falhamente. Nunca teve um tema, sempre foi meio umbigo, me rendeu alguns amigos, registrou bons e maus momentos, serviu pra paqueras, tentou não se envolver em celeumas, continua aqui. Não dá pra dizer que a chegada do twitter e do google reader foram legais para o bichinho. Migrei para o wordpress, troquei a bruxa do Nalon pela bruxa do Weno (amo as duas), mas escrever que é bom, ultimamente, necas de pitibiriba. Em parte porque fiquei mais discretinha, sem querer mostrar muito o que faço e o que sinto – contradição enorme, já que no twitter estamos todos nus e de remela.

Conto então que estou bem, morando perto dos pais num apartamento muito pequeno e quase organizado, cada vez mais praticando a tal da simplicidade voluntária, ajudando a organizar uns encontros com os amigos pra ouvir idéias legais, trabalhando num projeto temporário que reúne muita gente bacana e fazendo um curso que apareceu na hora certa. Mesmo estando efetivamente em falta, não me sinto em falta com os amigos e o namorado e os amigos do namorado. Tem uma sensação de encaixe que tem permeado tudo e é muito bem-vinda.

Nos projetos futuros estão alguns posts pra cá que nem prometo mais, como um sobre currículos e um sobre livros, misturando cada vez mais os assuntos. O curso vai render um trabalho final bem bacana sobre bancos de tempo, que eu vou detalhar mais assim que organizar as idéias. Isso vai sair em definitivo lá pra dezembro, mas devo falar bastante sobre o projeto a partir do fim de julho. Quanto ao Simplim, que foi minha empolgação de outrora, estou pensando em matá-lo ou encostá-lo e trazer os posts em definitivo para cá. Um projeto sobre simplicidade está sobrando na minha vida simples! Se alguém tiver idéias para postar lá ou estiver interessado em discutir mais amplamente sobre simplicidade voluntária, estou a postos e de ouvidos abertos.

Em suma, não me deixem só. Pode ser que eu escreva em mais de 140 caracteres de novo.

A realidade é imaginada

Este artigo sobre ambientalismo mental vem muito a propósito das últimas polêmicas. Este é um trecho da tradução mais ou menos que fiz. Os grifos são meus.

Temos de afastar imediatamente a noção de que o nosso ambiente mental é único para cada indivíduo. Assim como nós compartilhamos o nosso ambiente natural, também compartilhamos nosso ambiente mental, que é formado através da cultura que consumimos

Eu lhe darei uma sandália de prata

Tenho livros de vários amigos na minha estante e livros meus espalhados por aí. Tenho roupas em três casas diferentes. Passei o reveillon na casa de um amigo e às horas da manhã que saí abandonei por lá minha maquilagem (todos os quatro itens), minhas sandálias novas prateadas (assim pensei) e a bolsa de Mafalda que minha irmã me deu. Meses depois a Queridona ia a uma formatura e já pronta descobriu que o par de sandálias em seu poder tinha um pé 40 e um pé 36. Foi à festa com sapatos que não dançam. Na época, eu disse que a culpa era do Dono da Casa, coitado, ao final era minha.  Longe de mim fazer pouco caso do imprevisto que passou a queridona, mas acho graça ter a minha vida misturada a outras. Pertenço.

We can play it safe, or play it cool

It’s a funny way, to make ends meet,
when the lights are out on every street,
It feels alright, but never complete,
without you,
(…)
We can play it safe, or play it cool,
follow the leader, or make up all the rules,
whatever you want, the choice is yours,
So choose.

Faz uns cem anos eu levava palavras pra passear e há quinhentos me enrolava nelas. De duas semanas pra cá são vinte cafés e achar o caminho com o nariz pelas ruas do centro, farejando esquinas de portas pequenas e namorando a loja da Alfândega que afinal comprei inteira com todos os temperos.

Venho esbarrando nos homens de terno que não são tão bonitos aqui como lá e pensando em coisas verdes, amarelas, magrelas, morenas, deliciosas, cantando no metrô para espanto certo dos transeuntes, ouvindo cantadas gaiatas ditas sem baba na boca e fazendo ouvidos de mercador na rua do ouvidor.

Seguir horários é mais fácil do que eu pensava, tudo me obedece até o estômago até o sono, consigo não ser inconveniente nem inconveniada na gritaria dos cor-de-rosa e estudar betume e soja com desenvoltura.

Mais ainda, meus estrangeiros agora vêm de perto e passeiam por ruínas da cidade, passeiam pelo chiquê dos restaurantes, até em borboletários se metem e eu atravesso incólume quase sem que as borboletas me toquem o estômago, orgulho de mim, intrépida. Não sei muito bem o que fazer com as crianças, bichinhos esquisitos.

Agora o barulho da máquina de escrever me lembrou daquela pasta de manuscritos guardada embaixo do colchão, não sei se um dia a resgato. Lembro de passagens em que a jovem se perguntava se um dia ia conseguir como se dar inteira sem rasgar pela metade ou algo assim, uma bobagem romântica, e eu cartesianamente descubro que é sempre metade que vai, sempre um pedaço pequeno, uma isca, esperando resgatar um todo que nunca chega.

Reconhecer incompletude incomoda mais que comer borboleta, mais que tropeçar em pedra portuguesa.

Vai ver estão certos, sou um pouco doida.

Coração ligado, beat acelerado

Ela é a pessoa mais volúvel que eu conheço. Ela não sossega, fica olhando pros lados, sem saber ainda se quer ser toda má Betty Davis, ou Audrey tomando sorvete em Roma. Quando anda nas ruas vai pensando na cena do filme ruim brasileiro que viu, a cena era boa, a moça muito descolê num balanço no meio de seu loft-estúdio de pé-direito muito alto, balançando e falando pro mocinho recém-reencontrado – paquera de adolescência, década e meia depois -, contando que foi voluntária na África, depois modelo em Nova Iorque, cansou e foi pra Paris e agora é artista aqui, aí dá impulso e abraça o rapaz com as pernas, se pendura nele, uma cena bonita. Ela pensa em quem queria abraçar com as pernas e quase não consegue contar todos mas também quase não tem perna pro melhor de todos, dá-se um jeito, polvo em polvorosa. Ela dá um gole na vodka e lembra de novo que nos filmes as pessoas bebem pouco, o truque da sedução envolve sempre um copo meio cheio, melhor assim, prefere beber pouco. Ela enumera de memória as histórias que tem pra contar reprimindo a vontade repentina de se passar por outra.

Alice não me escreva aquela carta de amor

Diário pra mim tem jeito de rebarba de caderno espiral. Sempre arranco o que a ridícula de meses atrás escreveu. Não sabia nada, coitada. No blog ao menos me obrigo a ser críptica, tentar parecer inteligente, me preservar, mandar recados escondidos a mim mesma, dedicar sentimentos anos depois – viu? aquele Matisse é de quando você me esqueceu – ou entregar meus segredos a outros na forma de links para três declarações de amor aleatórias seguidas. Mesmo assim, os posts não nascem no teclado quase nunca, e sim em cadernos espirais, numa caligrafia que, se tivesse sido usada num diário, garantiria a hermeticidade por si só.