16 toneladas

Certa feita eu arrastei um bonde por um certo colega. Não é que o rapaz fosse só, como dizem lá em Minas, “jeitoso”. Ele era bonito, engraçado e era interessante daquele jeito que costumam ser as pessoas que não querem saber da gente. E tinha um agravante dos mais graves: a voz dele. Era ele fazer um comentário qualquer naquela voz de clave-de-fá que chegava a dar um negócio. Cortando a história pra depois que o bonde do desejo passou e me deixou chutando latinha no ponto: ele casou com a namorada da época, estão juntos até hoje, têm filhos, aquela coisa linda margarina que eu fico feliz de verdade porque é isso, né, amor é desejar o melhor pro outro e tal. De vez em quando eles postam vídeos e a voz da moça é doce, doce, uma mansidão em outra oitava, e eu estou até hoje esperando eles gravarem uma radionovela.

Vintage Stereo Equipment --- Image by © Playboy Archive/Corbis
Vintage Stereo Equipment — Image by © Playboy Archive/Corbis

É a alma dos nossos negócios

Opa! Como tá? Que que cê manda? Conta! Saudade d’ocê.

O Zucka sabe de quem a gente gosta. Põe no menu, ali, descarado: as primeiras stories, o ícone no videozinho brega, uma oferta de amizade no facebook baseada sabe-se lá em quais conversas do whatsapp, até um lance de localização dos celulares que a mim não engana – it happens. Sua cara bem debaixo do meu nariz.

No entanto a gente resiste, a gente não diz, a gente deixa pra lá. “A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir.” E depois a gente lê que deram nome em inglês pra isso e é coisa de millennials, sei lá. Confiro meu erregê, vejo se não é problema do errejota, ganho por dabliuó.

Em tempo de tanto sinal fechado e tão pouca carta ao tom, as redes e mensagens ajudam a tecer proximidades. Sem cobrança, com leveza, assim, na paz. Pouco vamos marcar, bastante tô aqui. Eu gosto.

Qualquer coisa grita. Fica bem. Juízo!

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Você tem exatamente três mil horas

Primeiro tenho que me apaixonar até o coração doer. Essa parte é fácil. Depois a gente se enrola. Em palavras, gestos, beijos, umas coisas mais. Ainda não é namoro, espera. Depois a gente olha em volta; analisa o tempo, o espaço, o calendário, as paredes, o de-dentro. Você olha daí, eu já olhei de cá, vou olhar de novo. Com leveza, a gente nunca vai esquecer a leveza. E aí três coisas valem bem mais do que o resto. Primeiro profundidade, que tem a ver com intimidade, com toques e conversas sem melindre de “até ali não vou mais”. Previsibilidade é o lance da agenda, tirar o jogo de adivinha da próxima vez, a próxima vez está na esquina, já já, seja ela em uma semana, um mês ou dois. E lealdade. Serei leal contigo, quando eu cansar dos teus beijos te digo. Cansei de histórias que esgarçam. Ponto final ou ponto-e-vírgula, a gente combina de não interromper sem dizer. Todo o resto se combina, algo do resto tocamos de ouvido. Sou pragmática? Mas o que é o pragmatismo senão um carinho que já pensou nas coisas práticas?

 

meeting, acrylic and oil on canvas, 70 x 100 cm, groningen nl 18, by Daniel Machado Valentim
meeting, acrylic and oil on canvas, 70 x 100 cm, groningen nl 18, by Daniel Machado Valentim

 

Do tamanho ideal, pau-a-pique e sapé

“Mas me diz uma coisa… Você já foi muito rica?”

Eu ia participar de uma matéria sobre simplicidade e a produtora (uma simpatia, é minha amiga nas redes sociais) me fez essa pergunta entre as primeiras.

Porque para essas matérias serem interessantes tem que mostrar radicalismo ou provar que não é falta de escolha – como seria para muitos. A simplicidade do pobre e do estudante não vale. Na ressaca dos movimentos de minimalismo e, depois, Marie Kondo, tem até muita gente dizendo que isso de simplicidade é elitismo. Como dizia o Joãosinho Trinta: quem gosta de pobreza é intelectual, pobre gosta é de luxo!

Eu concordo e discordo.

Concordo que a simplicidade não é tão pronta como eu mesma às vezes dou a entender. Se eu jogo fora o que não uso é porque garanto que no futuro tenho como comprar de novo. Se eu doo algo, é porque me desapetece o tempo gasto em vender, e abro mão de recuperar o dinheiro que meu eu passado gastou ali.

Mas por outro lado, por que não incentivar um novo modelo de consumo, de estética mesmo, que não o do excesso? Não é assim que as modas pegam? Tudo que é “coisa de rico” uma hora chega reinterpretado, não?

Simplicidade meio-termo, simplicidade nisso sim naquilo não, minimalismo sem “largar tudo para”, minimalismo do “sempre fui assim”, simplicidade escolhida. Tá tendo. Pode. Pode tudo! #tãosimples.

Qualquer outro lugar ao sol

Foi amante dele muitas vezes, por muitos anos, e sob vários interditos. Muito tempo depois, constrangido, o filho adulto dele atendia o telefone:
– Quero falar com ele. Me deixa. Preciso.

Dona de uma beleza de miss Brasil ou atriz de novela, poderia ter tido qualquer homem. Mas não, se apaixonou por ele, o biólogo, bicho do mato, garrado em planta, árvore, bicho. A altivez dele se esparramava sobre o verde, se sujava de terra, se afastava mais e mais de qualquer mesa posta.

Ainda assim ela voltava, cintura, peito, olhos azuis pedindo o olhar dele, anca procurando mão.

Daí que a história termina por aqui mesmo, fim da vida, afastados, cada qual patético à sua maneira, filhos e netos derramados pelo mundo.

Num entremente, a confidência:
– Prima, eu teria ido morar no Xingu com ele. Largava tudo, ia pro Xingu ficar pelada na mata.
– Por que não foi?
– Ele não pediu.

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Eu vejo o seu poster na folha central

Agora eu escrevo tudo em segunda pessoa e isso é bom, porque quer dizer que eu escrevo para você, que está fora de mim. Não interessa se você é o meu amor da adolescência, o homem em quem eu pensei por todos esses anos, a mulher incrível que eu admiro à distância, o amigo com quem me desentendi.

Você. Você me assombra, você me persegue (e não o contrário), você me ensina sem nem saber. Você me provoca, você me inspira. Eu não sei o que eu faria se te encontrasse na rua, ao acaso. Eu queria contato, eu queria resolução, eu queria te fazer perguntas, eu queria ver o escuro do mundo.

E aí descubro que você está fora de mim porque está tão dentro, e isso me vira do avesso.

Você tem música, tem gosto, tem cheiro, tem a sensação de quando está perto, e se não esteve tão perto tem memória associada e fantasia de quando a gente se encontrar de novo, porque a gente vai se encontrar de novo, Whitman, eu sei.

Queria te dizer que a gente se viu hoje, você não viu, eu vi, e eu sei quem somos.

Leila Cabral, yogini amada, com autorização.
Leila Cabral, yogini amada, com autorização.

I know you wanted me too

Bem resolvida! Quem não me conhece que me compre. Bem resolvida, o mal-resolvido repito e repito, em pensamento e em papéis soltos, como migalhas de Maria e tantos Joões. Para achar o caminho de volta (e acho), para dizer olha: estive aqui, longe, perto, perto de novo. Arqueóloga sentimental, invento coincidências, telepatias, mastigo respostas, guardo imagens — daquela cama vejo a janela, alguém em pé me olhando, vejo o gesto, o corpo, sei tudo de cor. Depuro a lembrança até não lembrar, até achar que inventei, me trazem de volta o storyboard completo, acrescido de alguma ficção (talvez). Vou procurar as pistas do que fui e fiz, Deus! como pensei. Ninguém sã tem memória assim, ninguém gesta sentimento com tanto afinco, mas bueno, aqui chegamos, a escrita não dá conta, a birita não dá conta, só olhar, olha como ela te olha, só olhar e escrever, é o que me resta.

Banalities, por Richard Summers

Banalities, por Richard Summers

Vamos ao que resta, amor.

Preciso voltar a escrever. Escrever com frequência, escrever com profundidade. Uma professora definiu que a gente tem que escrever ou pra curar ou pra servir, e eu estou disposta às duas coisas. Ainda adiciono à minha missão o reescrever: editar e revisar para atender à cura ou à missão de outras pessoas, ampliar vozes e experiências, espalhar sentimento e saber. Cada vírgula em seu lugar; tudo na mais imperfeita ordem, tudo na mais profana paz.

https://www.youtube.com/watch?v=Rk1XLxEFE_0

Uma Nota de Agradecimento aos Homens

Por Mary-Louise Parker
Publicado originalmente na Esquire, 9/jul/09
Tradução Heloisa Paula

A você, a quem interessar possa:

Criatura viril, que cheira bem mesmo quando não cheira bem, você acorda devagar demais, com o cabelo bagunçado pra cima e um olhar ligeiramente perdido como se você tivesse sete ou setenta e cinco anos; você pode consertar minha porta da frente, minha pia, e abrir a maioria dos potes; você, que perde uma abotoadura e tem que se arranjar com um alfinete, você prometeu aniquilar intrusos e dragões com sua chave Phillips ou sua Montblanc; a você, porque você repara numa mulher carregando um naco saudável de anos ou quilos e solta um assobio discreto e sincero; porque você acha que qualquer um dos tapetes está ótimo, sério, está; você parece andar pela rua um pouco mais altivo do que eu, um pouco mais atento mas ainda com um propósito; a você que codifica, conjuga, chuta uma bola, coloca isca no anzol, monta um armário decente ou um sanduíche perfeito; você que dá vinte contos para as crianças vendendo chocolate Hershey’s e espera na esteira de bagagem por três horas na sua camisa de flanela; você, senhor, você tira meu pedido, meu pulso, minha doideira; você que me ensaboa no banho, mergulha comigo na banheira; a você, menino crescido, o cavalheiro, soldado, professor ou homem das cavernas, o homem sofisticado com monogramas nas toalhas e sal nos chocolates, a você e àquele cara no quiosque; obrigada pelo tour na vinícola, no corpo de bombeiros, na cabine de som, obrigada pelo caleidoscópio, pela Nebulosa Cabeça de Cavalo, pela pintura, pela verdade; a você que me carrega pelo estacionamento, pelas escadas, para o pronto-socorro, catre ou tatame; a você que aparece de vez em quando só pra confundir e atormentar, e você que fica em órbita, sempre, à minha esquerda e firme, você me defendeu, não vou me esquecer disso; a você, o que não consegue entender e nunca vai conseguir, e você que perdeu o controle remoto, o cachorro, ou o rumo completamente; a você, mago, você cantou no meu ouvido e me trouxe de volta dos mortos, você me conta coisas, me arrepia; aos que me destruíram, ainda que por um minuto, e aos que me aumentaram, consumiram, me devolveram meu coração dez vezes maior; a quase qualquer coisa que se merece chamar de um homem: Como eu te amo, com sua habilidade de acender fogueiras que me aquecem, me acendem.

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All you need is love

“Gosto de como você escreve” é o caminho mais curto para o meu coração. Lá você vai encontrar portas cor-de-rosa e amarelas e nunca se sabe se detrás delas surgirá um José Arcadio (ay, hermanita, ay, hermanita), uma Melisandre do bem ou uma bruxa gueixa sorridente. Os quartos que lá se loteiam são um labirinto de memórias e palavras, letras e inspirações, gatos enrolados pelos cantos, um hotel de putas onde o tempo e as conexões se encaixam fio a fio. Sentir em círculos pode não ser tão ruim assim – você vai ter a melhor cicerone do portal pra Pasárgada. Prometo.

Alberto Solano Flores - New Blood

Para ouvir: Sob Medida com Chico sendo da nossa laia, ou Sob Medida com a Bethânia que o outro lá não gosta.