Por onde anda sua mão

Fechei os olhos e não sonhei – mas pensei num homem vitruviano. Eixos. Da cabeça ao entrepernas: objetivo, dureza, em frente. Perpendicular a esse, o combo mãos e sorriso. Têm intenção, personalidade e talvez até idades diferentes do resto. Mãos lindas e delicadas que pousam suaves, nem brutas nem invasivas. Sorriso menino, desarme. De vez em quando os eixos se invertem, mas isso é outra história. Sempre bom olhar o todo. Inteireza.

Tendo a lua

Não sei botar gravidade no amor. Tudo flutua e meu esforço é tirar peso. Declaração a sério, beijo a sério, sexo a sério, não sei fazer. É tudo rindo, um tal de achar graça, divirto(-me). Até no casamento a família do noivo comentou (implicou?): “Ela entrou na igreja sorrindo, parece que casa todo dia”. Sendo assim, me duvidam. Quem requer sisudez (ou predileção) vai se ver boiando no espaço. Salvo raras ocasiões de zanga ou medo, “eu te amo” levita. É da minha natureza.

(Mas te amo.)

 

Um bilhete curto e já não há nada

Print. O equivalente moderno do “aí eu disse, aí ele disse”. Ela achou uns prints de um ano atrás. O susto por trás de cada frase, os minutos decorridos entre. Ele disse. Ele disse “talvez eu não vá”, e realmente não foi, porque se machucou jogando qualquer coisa que não era o jogo que ela queria (rá!). Ela disse “eu quero”, porque na hora era a única coisa que atinava dizer, até pensar. Nos prints não aparece, mas uma hora deu certo. Depois nunca mais.

 

Esconda um beijo pra mim

Você esquenta o resto de sopa no microondas, eu me enrosco no sofá agarrada no celular pra te fazer companhia enquanto você termina aquele trabalho, saio pra rua e volto morrendo de rir, ou então você vem conhecer minhas pessoas, a gente encontra alguém sem querer na rua e você se surpreende de como eu conheço todo mundo, andamos apontando estabelecimentos, aquele restaurante só aceita dinheiro, eu não provo nada muito doce mas peço jalapeño na primeira oportunidade, paramos pra comprar guloseimas estranhas, perdemos as contas dos cafés, você faz piada sobre o moço da padaria ter pena do seu café solitário, eu reclamo do frio e depois do calor, a gente sente sono sincronizado, você tem que comprar pano de chão pra conter o vazamento da cozinha, eu quero botar os livros em ângulo reto pelo menos, cabe vida nessa vida picotada, nada disso tem nome, vê se não some, cabeça, claro que não, bundona, beijo, até a próxima, tchau.

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16 toneladas

Certa feita eu arrastei um bonde por um certo colega. Não é que o rapaz fosse só, como dizem lá em Minas, “jeitoso”. Ele era bonito, engraçado e era interessante daquele jeito que costumam ser as pessoas que não querem saber da gente. E tinha um agravante dos mais graves: a voz dele. Era ele fazer um comentário qualquer naquela voz de clave-de-fá que chegava a dar um negócio. Cortando a história pra depois que o bonde do desejo passou e me deixou chutando latinha no ponto: ele casou com a namorada da época, estão juntos até hoje, têm filhos, aquela coisa linda margarina que eu fico feliz de verdade porque é isso, né, amor é desejar o melhor pro outro e tal. De vez em quando eles postam vídeos e a voz da moça é doce, doce, uma mansidão em outra oitava, e eu estou até hoje esperando eles gravarem uma radionovela.

Vintage Stereo Equipment --- Image by © Playboy Archive/Corbis
Vintage Stereo Equipment — Image by © Playboy Archive/Corbis

É a alma dos nossos negócios

Opa! Como tá? Que que cê manda? Conta! Saudade d’ocê.

O Zucka sabe de quem a gente gosta. Põe no menu, ali, descarado: as primeiras stories, o ícone no videozinho brega, uma oferta de amizade no facebook baseada sabe-se lá em quais conversas do whatsapp, até um lance de localização dos celulares que a mim não engana – it happens. Sua cara bem debaixo do meu nariz.

No entanto a gente resiste, a gente não diz, a gente deixa pra lá. “A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir.” E depois a gente lê que deram nome em inglês pra isso e é coisa de millennials, sei lá. Confiro meu erregê, vejo se não é problema do errejota, ganho por dabliuó.

Em tempo de tanto sinal fechado e tão pouca carta ao tom, as redes e mensagens ajudam a tecer proximidades. Sem cobrança, com leveza, assim, na paz. Pouco vamos marcar, bastante tô aqui. Eu gosto.

Qualquer coisa grita. Fica bem. Juízo!

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Você tem exatamente três mil horas

Primeiro tenho que me apaixonar até o coração doer. Essa parte é fácil. Depois a gente se enrola. Em palavras, gestos, beijos, umas coisas mais. Ainda não é namoro, espera. Depois a gente olha em volta; analisa o tempo, o espaço, o calendário, as paredes, o de-dentro. Você olha daí, eu já olhei de cá, vou olhar de novo. Com leveza, a gente nunca vai esquecer a leveza. E aí três coisas valem bem mais do que o resto. Primeiro profundidade, que tem a ver com intimidade, com toques e conversas sem melindre de “até ali não vou mais”. Previsibilidade é o lance da agenda, tirar o jogo de adivinha da próxima vez, a próxima vez está na esquina, já já, seja ela em uma semana, um mês ou dois. E lealdade. Serei leal contigo, quando eu cansar dos teus beijos te digo. Cansei de histórias que esgarçam. Ponto final ou ponto-e-vírgula, a gente combina de não interromper sem dizer. Todo o resto se combina, algo do resto tocamos de ouvido. Sou pragmática? Mas o que é o pragmatismo senão um carinho que já pensou nas coisas práticas?

 

meeting, acrylic and oil on canvas, 70 x 100 cm, groningen nl 18, by Daniel Machado Valentim
meeting, acrylic and oil on canvas, 70 x 100 cm, groningen nl 18, by Daniel Machado Valentim

 

Do tamanho ideal, pau-a-pique e sapé

“Mas me diz uma coisa… Você já foi muito rica?”

Eu ia participar de uma matéria sobre simplicidade e a produtora (uma simpatia, é minha amiga nas redes sociais) me fez essa pergunta entre as primeiras.

Porque para essas matérias serem interessantes tem que mostrar radicalismo ou provar que não é falta de escolha – como seria para muitos. A simplicidade do pobre e do estudante não vale. Na ressaca dos movimentos de minimalismo e, depois, Marie Kondo, tem até muita gente dizendo que isso de simplicidade é elitismo. Como dizia o Joãosinho Trinta: quem gosta de pobreza é intelectual, pobre gosta é de luxo!

Eu concordo e discordo.

Concordo que a simplicidade não é tão pronta como eu mesma às vezes dou a entender. Se eu jogo fora o que não uso é porque garanto que no futuro tenho como comprar de novo. Se eu doo algo, é porque me desapetece o tempo gasto em vender, e abro mão de recuperar o dinheiro que meu eu passado gastou ali.

Mas por outro lado, por que não incentivar um novo modelo de consumo, de estética mesmo, que não o do excesso? Não é assim que as modas pegam? Tudo que é “coisa de rico” uma hora chega reinterpretado, não?

Simplicidade meio-termo, simplicidade nisso sim naquilo não, minimalismo sem “largar tudo para”, minimalismo do “sempre fui assim”, simplicidade escolhida. Tá tendo. Pode. Pode tudo! #tãosimples.

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Qualquer outro lugar ao sol

Foi amante dele muitas vezes, por muitos anos, e sob vários interditos. Muito tempo depois, constrangido, o filho adulto dele atendia o telefone:
– Quero falar com ele. Me deixa. Preciso.

Dona de uma beleza de miss Brasil ou atriz de novela, poderia ter tido qualquer homem. Mas não, se apaixonou por ele, o biólogo, bicho do mato, garrado em planta, árvore, bicho. A altivez dele se esparramava sobre o verde, se sujava de terra, se afastava mais e mais de qualquer mesa posta.

Ainda assim ela voltava, cintura, peito, olhos azuis pedindo o olhar dele, anca procurando mão.

Daí que a história termina por aqui mesmo, fim da vida, afastados, cada qual patético à sua maneira, filhos e netos derramados pelo mundo.

Num entremente, a confidência:
– Prima, eu teria ido morar no Xingu com ele. Largava tudo, ia pro Xingu ficar pelada na mata.
– Por que não foi?
– Ele não pediu.

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Eu vejo o seu poster na folha central

Agora eu escrevo tudo em segunda pessoa e isso é bom, porque quer dizer que eu escrevo para você, que está fora de mim. Não interessa se você é o meu amor da adolescência, o homem em quem eu pensei por todos esses anos, a mulher incrível que eu admiro à distância, o amigo com quem me desentendi.

Você. Você me assombra, você me persegue (e não o contrário), você me ensina sem nem saber. Você me provoca, você me inspira. Eu não sei o que eu faria se te encontrasse na rua, ao acaso. Eu queria contato, eu queria resolução, eu queria te fazer perguntas, eu queria ver o escuro do mundo.

E aí descubro que você está fora de mim porque está tão dentro, e isso me vira do avesso.

Você tem música, tem gosto, tem cheiro, tem a sensação de quando está perto, e se não esteve tão perto tem memória associada e fantasia de quando a gente se encontrar de novo, porque a gente vai se encontrar de novo, Whitman, eu sei.

Queria te dizer que a gente se viu hoje, você não viu, eu vi, e eu sei quem somos.

Leila Cabral, yogini amada, com autorização.
Leila Cabral, yogini amada, com autorização.