Fechei os olhos e não sonhei – mas pensei num homem vitruviano. Eixos. Da cabeça ao entrepernas: objetivo, dureza, em frente. Perpendicular a esse, o combo mãos e sorriso. Têm intenção, personalidade e talvez até idades diferentes do resto. Mãos lindas e delicadas que pousam suaves, nem brutas nem invasivas. Sorriso menino, desarme. De vez em quando os eixos se invertem, mas isso é outra história. Sempre bom olhar o todo. Inteireza.
Juízo #3: é o grito, é o passo, é o gesto
Em algum momento dos anos 2000 eu ouvi um podcast do Ricardo em que ele tocava “Três Coisas”, uma música do Hermeto sobre a voz e o poema do Mario Lago. Me apaixonei pelo poema e passei a carregá-lo comigo.
É o gesto
Frequentemente me pego pensando nos gestos das pessoas. Quando eu morava longe e achava que nunca mais ia ver a Teca (minha amiga poetisa, confiram!), fizemos uma chamada de vídeo no finado msn e foi um conforto ver como ela mexia nos cabelos longos enrolando um rabo de cavalo lateral improvisado com as mãos. A Carol, de Campinas, explicava lá os lances da tese dela girando os punhos como se aquilo fosse facilitar o nosso entendimento. O Dan nunca espalmava completamente as mãos, relaxadas elas estavam sempre meio fechadas protegendo alguma coisa ou apoiadas na coxa ou no rosto. Daniel, o outro, gesticulava com o cigarro como se o cotovelo estivesse colado ao corpo, só levantava o ombro e desgrudava o braço em ângulo reto se fosse assunto de muita ênfase. Outro amigo, o Pedro, gesticulava em frente ao rosto com suas mãos enormes, e usou por muito tempo na rede social uma foto que mostrava justo isso. Minha irmã mexe as mãos igualzinha a mim, a ponto de achar que era eu quando viu uma gravação. Eu mesma tenho os dedos compridos e um amigo do colégio diz que lembra de mim fazendo origami durante as aulas. Palestrando online eu gesticulo pra fora da câmera, tentando expandir o que estou dizendo.
O que quer dizer tudo isso? Talvez tenha a ver com o fato de que eu não sou muito uma pessoa de olhar nos olhos. Talvez seja só uma questão de catalogar o detalhe. Talvez seja o que o Mário Lago disse: “O gesto é a voz do proibido / Escrita sem deixar traço / Chama, ordena, empurra, assusta / Vai longe com pouco espaço / É o passo, é o gesto, é o grito, / É o gesto, é o grito, é o passo.”.
É o passo
Assisti ao seriado As 7 vidas de Léa já faz uns dois ou três meses e ele “colou” comigo. Seriado francês, elenco jovem, enredo baseado em livro – mas no livro era Léo, não Léa.
Não posso contar muito pra não dar spoiler, mas tem troca de corpo e tem viagem no tempo – dois temas que eu curto bastante. Que passos você daria dentro de outro alguém?
Recomendo demais.
É o grito
E a Copa, hein? Alguém se animou?
Obrigada por ler até aqui. Você pode ler as cartas anteriores no arquivo.
(publicado originalmente no Substack e trazido pra cá em 20-fev-25)
Juízo #2: domingos, livros e a festa da democracia
Esta é a minha primeira carta neste formato, e eu estou escrevendo num domingo.
Era assim que ia começar minha primeira newsletter, quando eu abri a conta no Substack em maio do ano passado. Tinha que se chamar “16 meses pra escrever qualquer porcaria”, né?
Larguei mão de me obrigar a escrever no domingo porque essa já é um dia pesado pra mim. Não, não é o capitalismo falando, essa seria a resposta fácil. Domingo me lembra a música dos Trapalhões e do Fantástico, mesmo eu tendo me livrado da tv há 16 anos. Mais que tudo, domingo me lembra as DRs domésticas da adolescência, então ficou decidido que domingo é chato e minhas DRs têm que ser curtas, leves, multilaterais e sem dia marcado. Combinamos que eu vou escrever a newsletter quando escrever, tá?
“É curioso como tenho lido cada vez mais e cada vez menos”
Essa foi uma frase que a Bia me mandou como resposta da última newsletter – e explicou: “passo os olhos pelos textos dos posts por horas e não consigo terminar um livro.”
Eu não poderia me identificar mais. Tem muita gente falando sobre isso ultimamente, como o Alex:
“As pessoas que realmente querem ler leem o tempo todo. Estão lendo agora. Aproveitam cada cinco minutos no metrô ou na fila do banco para ler mais duas pagininhas, como um fumante ansioso que aproveita qualquer oportunidade para ir fumar um cigarrinho lá fora.”
Eu já fui assim. Onde foi que desandou? Definitivamente não posso colocar a culpa na pandemia. Talvez as redes sociais? Sei lá. Agora lendo o texto do Alex me dei conta de que criei uma regra de leitura contraproducente pra mim mesma, que é ler bastante de uma vez, seja lá o que isso signifique. Vou voltar ao passatempo-cigarrinho e deixar de ser pretensiosa.
Para firmar compromisso, compartilho com você dois livros que estou lendo a passo de tartaruga, ambos de não ficção, um no Kindle e outro de papel. Conto quando terminar:
1. The Vagina Bible, da Dr. Jen Gunter. A primeira vez que ouvi falar dessa médica foi num artigo criticando a corrente de “bem-estar feminino” capitaneada pela Gwyneth Paltrow. Ela arrasa com a atriz, dando argumentos científicos e também explicando os fatores culturais que levam mesmo as tendências supostamente mais moderninhas e titelê a se apoiarem na ideia de que o corpo feminino é imundo. Além de ser uma delícia de ler – porque ela é sarcástica pra caramba – a Vagina Bible traz muita informação surpreendente, falando até das vaginas de homens trans e neovaginas de mulheres trans. Infelizmente nem este livro nem o outro dela sobre menopausa estão disponíveis em português. Bem bacana. Tô no comecinho ainda.
2. Mulher, roupa, trabalho: como se veste a desigualdade de gênero, de Mayra Cotta e Thais Farage. Fiz um curso com a Mayra Cotta este ano e, ao procurar sobre ela, encontrei este livro sobre um assunto que me interessa demais. Fala-se pouco – e se naturaliza muito! – o tal do “grooming gap”. Cada gênero tem suas obrigações com roupa e beleza, com as quais se gastam tempo e grana, e a gente sabe quem leva a pior nessa. Estou curiosa para seguir a leitura porque duas perguntas não me largam. Uma delas é como essa discussão de desigualdade de gênero no vestir/arrumar-se se estende quando falamos também de idade, raça, classe social, tamanho corporal, deficiência e orientação sexual. A outra é como nós, como indivíduos e como parte dos nossos ambientes de trabalho, podemos influenciar esse estado das coisas. Será que vale a pena seguir o fluxo e continuar o “jogo jogado”, roupinha linda, salto alto e maquiagem, para ter vantagens num sistema que funciona assim? Ou a gente vive a vida do jeito que melhor entende, fazendo outras escolhas, as nossas escolhas, para que as coisas mudem, ainda que pouco a pouco? Vamos ver o que Mayra e Thais acham.
E ainda tem uma pá de livros na fila de espera, melhor eu terminar logo!
Tudo preparado pra festa da democracia?
Já baixou seu e-título? Não deixe para a última hora, no dia não vai dar pra baixar.
Já sabe que dá pra justificar pelo app?
Já conhece o bot do TSE no WhatsApp?
Já sabe onde vai votar?
Já escolheu quem você vai eleger? (Te ajudo: Quilombo nos Parlamentos, Vote LGBT+, Meu Voto Será Feminista, Estamos Prontas, Campanha Indígena)
Já fez sua colinha?
Já parou pra pensar como vamos estar neste domingo à noite?
Eu espero estar cansada (pois mesária) e feliz.
Domingo é chato mas eu espero que este seja bom.
Calma que eu ainda estou aprendendo a formatar esse negócio aqui.
Pra falar comigo é só mandar email.
Beijo!
Publicado originalmente no Substack, importado para o blog em 18-fev-25.
Juízo #1: newsletter, genealogia e um seriado.
– Eu acho que vou escrever uma newsletter!
Eu disse isso há mais de um ano e não fiz nada ainda, então talvez esteja na hora.
Por que newsletter? Porque muita gente de quem gosto tá fazendo, porque é refrescante conseguir escrever um texto mais longo sem a barulheira das redes sociais, porque eu posso dizer o que quiser sem medo da turba ensandecida em ano de eleição.
Cá estou.

Genealojinha ou “o que aprendi trabalhando de graça”
Depois de pesquisar minha própria genealogia por duas décadas, há alguns meses comecei a me oferecer para fazer o esboço da árvore genealógica de outras pessoas gratuitamente.
Tem sido um aprendizado e tanto.
Minha primeira vitória foi estabelecer que as pessoas interessadas – amigas próximas e distantes, conhecidas do Twitter, amigas de amigas – teriam que disponibilizar os dados iniciais em um formato específico, um Google doc compartilhado. Parece bobagem, mas para uma pessoa que cresceu doida pra fazer favor que ninguém pediu, isso já é um limite importante. Me libera de correr atrás da pessoa para conseguir dados e de ficar catando fragmento de informação no WhatsApp.
Ao mesmo tempo, continuo com a pesquisa da minha família e bem ativa lá no FamilySearch, o site que uso para as pesquisas. Ajudo outras pessoas pesquisadoras no que posso… se elas pedirem. E dizer “vamos trocar dados sobre a nossa família” só para obter os dados que eu já tenho não é pedir. Segunda vitória do limite! Uruuu!
Tem sido bacana receber as variadas reações das pessoas, desde “minha mãe chorou de emoção ao ver o resultado da pesquisa” até “nossa, que esquisito”. Tem também o “você devia cobrar pra fazer isso”, mas tenho certeza de que se cobrar deixa de ser tão divertido. Sigo assim por enquanto.
A televisão de quem não tem tevê
– Heloística, você é uma iludida.
Bruno me mandou essa real porque falo aos quatro ventos que não tenho tv, mas tenho assistido infinitos seriados. O segundo monitor permite que eu veja algo ao mesmo tempo que navego online, na mesmíssima posição em que trabalho o dia todo. Que relaxante.
Please Like Me foi uma das últimas séries que vi, já meio antiguinha e encerrada depois de quatro temporadas. O personagem principal é um jovem gay que está descobrindo a própria sexualidade depois dos vinte anos e tem que cuidar da mãe bipolar. Uma delícia, engraçada e tocante, embora não seja possível gostar dele o tempo todo. Recomendo.
Pra onde vamos
A pandemia desregulou minha bateria social e eu não estou mais tão expansiva para procurar as pessoas com a frequência que gostaria. Mas se você quiser responder a esta newsletter pra bater um papo eu vou curtir!
Até a próxima!
(Publicado originalmente no Substack.)
Eu sempre me prometo que não vou mais escrever sobre você e que se escrever não vou mostrar nada. Vai daí um dia fico bêbada e mostro, porque é tão bom ficar nua desse outro jeito.
Bons tempos em que eu podia só lembrar de vez em quando e ensaiar displicente o que diria se te encontrasse na rua.

Agora a gente não vai encontrar na rua (oi, pandemia) e há possibilidades outras que você poderia aventar mas não oferece – impossibilitado, bravo, sem vontade, sei lá. Vontade e querer são soberanos, você sabe. Precisa de dois, pelo menos.
Então o lembrar agora é mais cotidiano. Você conhece a minha cabeça, ela viaja no tempo que nem um DeLorean. O suspiro que você deu na escada quando eu passei por você tá na mesma página da rua atravessada às pressas, às gargalhadas e com o coração aos pulos.
Voltei pra terapia só pelo gosto de dizer que os nós que você me dá são melhores que os que te faço.
(27-dez-20, publicado no twitter e mastodon em outras ocasiões, no blog em 17-fev-25)
Tendo a lua
Não sei botar gravidade no amor. Tudo flutua e meu esforço é tirar peso. Declaração a sério, beijo a sério, sexo a sério, não sei fazer. É tudo rindo, um tal de achar graça, divirto(-me). Até no casamento a família do noivo comentou (implicou?): “Ela entrou na igreja sorrindo, parece que casa todo dia”. Sendo assim, me duvidam. Quem requer sisudez (ou predileção) vai se ver boiando no espaço. Salvo raras ocasiões de zanga ou medo, “eu te amo” levita. É da minha natureza.
(Mas te amo.)
Um bilhete curto e já não há nada
Print. O equivalente moderno do “aí eu disse, aí ele disse”. Ela achou uns prints de um ano atrás. O susto por trás de cada frase, os minutos decorridos entre. Ele disse. Ele disse “talvez eu não vá”, e realmente não foi, porque se machucou jogando qualquer coisa que não era o jogo que ela queria (rá!). Ela disse “eu quero”, porque na hora era a única coisa que atinava dizer, até pensar. Nos prints não aparece, mas uma hora deu certo. Depois nunca mais.
Esconda um beijo pra mim
Você esquenta o resto de sopa no microondas, eu me enrosco no sofá agarrada no celular pra te fazer companhia enquanto você termina aquele trabalho, saio pra rua e volto morrendo de rir, ou então você vem conhecer minhas pessoas, a gente encontra alguém sem querer na rua e você se surpreende de como eu conheço todo mundo, andamos apontando estabelecimentos, aquele restaurante só aceita dinheiro, eu não provo nada muito doce mas peço jalapeño na primeira oportunidade, paramos pra comprar guloseimas estranhas, perdemos as contas dos cafés, você faz piada sobre o moço da padaria ter pena do seu café solitário, eu reclamo do frio e depois do calor, a gente sente sono sincronizado, você tem que comprar pano de chão pra conter o vazamento da cozinha, eu quero botar os livros em ângulo reto pelo menos, cabe vida nessa vida picotada, nada disso tem nome, vê se não some, cabeça, claro que não, bundona, beijo, até a próxima, tchau.
16 toneladas
Certa feita eu arrastei um bonde por um certo colega. Não é que o rapaz fosse só, como dizem lá em Minas, “jeitoso”. Ele era bonito, engraçado e era interessante daquele jeito que costumam ser as pessoas que não querem saber da gente. E tinha um agravante dos mais graves: a voz dele. Era ele fazer um comentário qualquer naquela voz de clave-de-fá que chegava a dar um negócio. Cortando a história pra depois que o bonde do desejo passou e me deixou chutando latinha no ponto: ele casou com a namorada da época, estão juntos até hoje, têm filhos, aquela coisa linda margarina que eu fico feliz de verdade porque é isso, né, amor é desejar o melhor pro outro e tal. De vez em quando eles postam vídeos e a voz da moça é doce, doce, uma mansidão em outra oitava, e eu estou até hoje esperando eles gravarem uma radionovela.
É a alma dos nossos negócios
Opa! Como tá? Que que cê manda? Conta! Saudade d’ocê.
O Zucka sabe de quem a gente gosta. Põe no menu, ali, descarado: as primeiras stories, o ícone no videozinho brega, uma oferta de amizade no facebook baseada sabe-se lá em quais conversas do whatsapp, até um lance de localização dos celulares que a mim não engana – it happens. Sua cara bem debaixo do meu nariz.
No entanto a gente resiste, a gente não diz, a gente deixa pra lá. “A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir.” E depois a gente lê que deram nome em inglês pra isso e é coisa de millennials, sei lá. Confiro meu erregê, vejo se não é problema do errejota, ganho por dabliuó.
Em tempo de tanto sinal fechado e tão pouca carta ao tom, as redes e mensagens ajudam a tecer proximidades. Sem cobrança, com leveza, assim, na paz. Pouco vamos marcar, bastante tô aqui. Eu gosto.
Qualquer coisa grita. Fica bem. Juízo!