I am the highway

Às vezes tento adivinhar o que ele pensa quando lembra que eu ficava olhando para o sanduíche dele. Ele era incapaz de comer um sanduíche sem antes abri-lo e ajeitar milimetricamente a salada. Quer dizer, eu olhava para as suas mãos e puxava assunto para ouvir outra vez aquela voz.  Quero saber se ele percebia que eu ficava olhando ele dormir no sofá da sala de estudos, pensando why-oh-why esse homem não é meu. Se ele ainda acha que eu sou diferente e meio doidinha. Um dia pergunto o que ele sentia quando eu mudei pra longe e eu escrevia pra ele contando o que eu almocei e quão miserável era a minha vida, e ele respondia com todo o carinho. Quem sabe inventam uma tomografia qualquer pra eu ver se ele registrou em algum lugar a extensão do meu crush e se espelhava do lado de lá.

You’re my Poetry Man

Você é que nem o James.

O James era um negão – mulato – de dreads. Ele trabalhava no reduto hippie da universidade, um restaurante/lojinha natureba, ele cozinhava todos os dias algum prato vegano. Todos os anos ele dizia que ia voltar para os Camarões e nunca voltava, porque todo semestre de outono trazia uma nova leva de meninas branquinhas e novinhas de New Jersey, que ele, aos 30 e poucos anos, fazia de tudo para pegar.

Veja bem, eu presenciei isso, o James falando as bullshit theories dele para toda uma mesa de garotas que ouviam as suas viagens astrais de iogue hipnotizadas. Ele dava aula de yoga também, não sei se contei, eu fiz uma aula dele toda de calça de lycra colada e ele filmou a minha bunda em close pra mostrar pro instrutor, apesar de eu namorar na época um roommate querido dele. Alguém me disse uma vez, não lembro quem foi mas tenho certeza de que foi um cara: “Você pensa que o tempo que o James está lá na Coop cozinhando e servindo comida, ele está pensando em comida? Claro que não, ele está pensando em mulher, ele está pensando em pegar mulher.”.

Eu mal conheço você, cara, e eu leio seus textos e vejo em cada vírgula bem escrita pura tática e técnica de pegar mulher. Eu não caio nisso porque, sabe, quero crer que as balzacas são mais dificeis de enganar, mas tudo isso me trouxe uma reflexão profunda. Vocês é que estão certos, você e o James, as piruetas e o estudo da vida selvagem têm que ser mesmo de vocês. Como é que eu, ente uterino, vou dar bola para alguém que não fala que quer beijar meus pés, que não me chama de pistoleira nem de coisa nenhuma, ainda faz um ar blasé todo santo dia, um ar de nem aí, tranqs, se vier eu como, mas hoje não posso? Assim não dou.

Sorte minha ter lá o reduto de me acharem tudo, porque senão não sei o que eu faria nesses dias chorosos de revezar o colo entre cabeça e pernas, de pedir comida chinesa e tomar vinho, e também nos dias alegres das safadezas marcadas ou não.

Estou tentando dizer que nos meus dias ruins só uma fé me vale, nos dias bons também, e que eu nunca pensei que fosse ficar triste assim por causa de algo que não fosse a sua, a nossa, a alheia malícia. Eu estou aqui sentindo a minha própria fraqueza no que sempre me foi mais frágil e mais natural.

O James afinal voltou para os Camarões e não abriu nem uma escola de yoga, nem um abrigo de menores, nem virou presidente: ele casou com uma virgem e teve uma filha, como havia de ser.

E você, nego, se quer ser meu amigo tá fadado a ouvir a ladainha de quem, balzaca, ainda não se achou.

Para ouvir: Poetry Man

E o albino Hermeto não enxerga mesmo muito bem

Continuo pensando, sentindo, amando, mas o escrever se esconde na falta de gramática para descrever o colorido de tudo que pulsa. Amo minhas mulheres insulares, meus homens inteligentes e gostosos, minhas bichas ousadas e minhas sapatas valentes.

O carnaval trouxe todo esse glitter à superfície, o amor cegueta e os cupidos apadrinhantes e amadrinhantes ficam por aí tentando o juízo de quem passa. Só resta ter um coração leve e um samba de Cartola à mão. É sempre – não, às vezes – bom revirar sentimentos e armários.

Nos escritos antigos fica clara a minha desistência: larguei mão de falar de amor porque as definições são tão amplas, fica difícil sair do lugar comum. De uns tempos para cá minha cabeça de fazer conta estabeleceu que

[amor] = [(respeito) + (admiração) + (tesão)].

Como toda equação, alterando as parcelas o resultado muda. Sem tesão o amor é fraterno, não há muito que se possa fazer, qualquer cama fica grande. É coisa para um amigo de fé, uma amiga incrível ou Gandhi. Quem some na cara-de-pau perde um pouco do respeito e o amor vira bandido porque, afinal, o tesão está lá e não tem como matar a admiração por quem está aí há tanto tempo. E quando a falta de intimidade impede o tanto de admiração para completar a equação, a coisa se chama sarna para se coçar, virou-mexeu você está cavucando mais fundo pra ver se rende, e pra qualquer lado que for essa sinuca de bico, o resultado não vai ser lá muito satisfatório.

Falta muito pro próximo carnaval?

Pubis Angelical

– (…) Já vai ver como aqui é diferente.
– Em que sentido?
– Que as pessoas se deixam levar mais pelo presente, não estão planejando tudo o que virá, como nós. Não se preocupam tanto.
– Não é porque são um pouco irresponsáveis?
– Pode ser, mas assim a vida tem mais sabor, como eles dizem, há mais surpresas, mais espontaneidade, ou não?
– Você se apaixonou por alguém?
– Não, infelizmente não. Não tive a sorte. São muito diferentes, sobretudo de você.
– Em quê?
– Nas bebedeiras que tomam…
– E que graça tem isso?
– Bem, quero dizer que se embriagam, e se soltam, entende?
– Se descontrolam.
– Isso! Era a palavra que estava procurando. E é lindo, assim se pode conhecer melhor as pessoas. Não estão controladas o tempo todo, escondendo quem sabe o quê.
– Você está agressiva, Ana.

Em: Pubis Angelical, Manuel Puig.

Quem de dentro de si não sai
vai morrer sem amar ninguém

Um Manifesto Etílico-Digital.

A implicância do dia é com quem despreza a internet como lugar de encontro e amizade e lança o mesmo desprezo à mesa de bar. Como se…
28 Jan

Como se toda amizade e todo amor só pudessem vir de interações profundas e/ou elevadas. Essa gente tá perdendo a vida. Tem que ver isso aí.
28 Jan

E de mais a mais quem critica a internet em geral não está marcando chopp nem chá nem café “porque a vida anda corrida”. Discurso hipócrita.
28 Jan

E quem critica o chopp e a mesa de bar não está saindo por aí tendo conversas filosóficas e inteligentes. Duvideodó.
28 Jan

Internet serve pra marcar chopp e filosofia de botequim é o que há, e as pessoas mais interessantes que conheço falam abobrinha lá e cá.
28 Jan

Amo vocês, desci da tampinha, acabou o discurso. Obrigada.
28 Jan

Alguma coisa está fora da ordem

‘Tain’t what you do, it’s the way that you do it.

Como sempre, na névoa entre ir de um lugar ao outro, entre um tem-que, um quero-muito e um será-que-dá, as palavras ficam se enroscando e fazendo cócegas nas idéias. A palavra da vez foi foco.

Ontem acordei com o pé esquerdo e fiz o que pude para focar no mau humor, mergulhar nele, já que não tinha jeito, e me emputecer com o email errado, com o diálogo idiota no gtalk, com a sacola azul voando pelos ares, com o casamento para o qual não fui convidada em 2007, com os nay-sayers, com a fumacinha que pairava sobre as outras pessoas com quem a segunda-feira não estava sendo nada gentil, com o pequeno desencontro, com tudo. No fim achei foi graça, contei pra todo mundo a história do casamento em 2007 (juro, olhei nos arquivos do gmail, nem sinal de convite) e pronto. Virou piada.

Fui a um evento. Foco no marketing, boas companhias, transfusão de bom humor, cabelo grisalho em gente nova, essas coisas. A amiga me conta no meio da conversa: “todo mundo dizia tanto que foco é indispensável que dispensei o que é múltiplo em mim, mas eu não posso ser uma coisa só, eu tenho que ser muitas”. Achei tão bonito, consolidar sendo muito.

Jantei. Foco no mais importante. Se os ingredientes faltam nos restaurantes, não dá pra pensar em comida sem pensar em gente sem casa. Olhar para o que – quem – é essencial, olhar vendo, falar e ouvir, conseguir discernir. Não devia ser difícil, e nem é, mas precisa da mente quieta, da espinha ereta, precisa de um coração pululante, precisa não distrair com o que é colorido e brilha. Precisa alinhar, afinar, sintonizar. Focar.

E aí você vai ver a falta de foco é só foco em outras coisas mesmo. Esperadas, desesperantes, o que for. Porque era mesmo o que você queria, ter foco em alguma coisa, e se distraiu além da hora do jantar. Porque passou um menino bonito ou uma menina charmosa e você deu aquela viradinha marota com a cabeça. Acontece. Pisca forte, olha o horizonte, abraça bem o seu amor e ó: foco.

Hoje melhorei, troquei de pé, tudo fluiu melhor, obrigada. Ainda vai ter um enrosco ou outro, vou ficar indignada com coisas pequenas (a fama se sustenta desde 2005, um novo tipo de recorde ou prova de que sou mesmo muito teimosa e pé-no-peito), vou cismar ou me distrair ou virar um girassol, mas as coisas entram nos eixos que-eu-sei.

Tive foco suficiente para escrever vários parágrafos sem encostar em uma caneta. Mas a foto que publicaram de mim na rede social? Fora de foco. Melhor mesmo. Foco demais às vezes não faz bem. Pergunte às formiguinhas.

Esta é antiga. Fev/2008.

Ela desatinou (II)

Foto: Loris Machado.
Foto: "O Abraço", por Loris Machado.

(Calma, bem mais calma, bem mais em paz.) Sorriso ou não, fez bandeira de viver diferente. Tudo era movimento e jogou da janela do ônibus suas verdades amassadas com as mãos. Rejeitou cada dogma da paixão: desejo não é indício de alma gêmea, aventura nem sempre é sair do porto seguro, e intimidade é um lençol bagunçado que sobra de um lado e falta do outro. Astronauta de si mesma, flutuou impelida pelos novos músculos e pelas entranhas fortes. Achou bonito entrar na roda-viva e nunca mais aceitou quem tem a cabeça a pé.

Eu te quero seu

Você, rapaz trotamundos já não tão inexperiente, que soube temperar testosterona com ternura, que para o bem ou para o mal sempre escolheu suas mulheres por serem fortes, que sempre as tratou muito bem, que quando não as tratou bem soube suportar o castigo estoicamente, que foi amigo das suas amigas, que emprestou os ouvidos a corações machucados, que foi camarada dos eleitos das amigas, que aguentou com esportiva as piadinhas dos amigos gays das namoradas, que convive modernamente bem com as ex-namoradas (mesmo as malucas), que soube aprender coisas, que soube ensinar coisas, que nunca aposentou o chapéu de amigo, que amou desamou deprimiu e amou, que foi passado de mão em mão pelas mulheres que te amaram para ser entregue à encantada, que viajou léguas only to be with her, você, criança grande do coração maior, merece encontrar sua sweet Lorraine.

Chovendo na roseira

E o esquecer era tão normal que o tempo parava.

Existe uma cidade em Minas que é a minha Macondo e uma certa fazenda onde moram os meus Buendía. O caminho para lá é sempre barrancos, pasto verde, curvas com histórias, falta muito?

O tempo na fazenda devia ter parado mas não: o fogão a lenha virou fogão industrial, cimento queimado virou ladrilho, suco de carambola virou coca-cola no café da manhã, o sertanejo virou pop, cavalos viraram motos e a casa se divide em quartos estranhos. Permanecem as roseiras, o incontrolável arbusto de rosa-chá, os gatos ariscos, os cachorros desenxabidos e o eterno morango de cerâmica.

As roseiras circundam a casa e nelas todos põem atenção – esta variedade era a preferida do bisavô, aquela da outra avó. Lá nos fundos, perto da piscina, longe da casa e quase totalmente coberta por uma folhagem tropical, fica a roseira de rosa-chá. Flores claras e pequenas, galhos indomáveis, sem espinhos, os montes de flores secas pedindo para serem arrancadas no primeiro nódulo, obsessivamente: tec-tec-tec.

Já vim para cá pequena, moleca, taluda, namoradeira, formada, casadoira, campineira, americana, desempregada, separada, segura, genealógica, urbana, mas sempre estranha. Nada do que sei ou sou vale de algo aqui. Perco totalmente a  identidade. Não tem internet, não tem conta pra fazer, não tem celular, não tem simplicidade voluntária, não tem amizade, chope, namoro. Aqui sou só a mulher esquisita que não cozinha, não dirige e não tem filhos.

Quantos anos você tem? Trinta e quatro? Ainda dá tempo de dar uma cria. Fuga para a rosa-chá: tec-tec-tec.

E a chuva. Não parou de chover um minuto. Minto: o par de horas de estiagem trouxe a visita dos primos, súbitos adultos, universitários, conversando namoros e dramas acadêmicos para me distrair. Depois disso, mais chuva. A chuva mais longa de que eu me lembro.

Conto isso tudo não é para me lamentar não, mas para me explicar. Dá um pouco de raiva, insisto em não me definir por eles, e ao mesmo tempo quero mostrar que não sou só a safada-cosmopolita que uns imaginam a partir das coisas que falo justamente para parecer interessante. Sou também esse buraco, esse vazio, essa falta de lugar. Sou a moça que correu pra rosa-chá: tec-tec-tec.

Para ouvir: Fazenda
Para ver e ouvir: Chovendo na roseira (via @elesbao)
Para ler: Lisbon Revisited (1923) e Lisbon Revisited (1926)

Unicamp: geografia e gênero

O post abaixo foi publicado originalmente em 16/4/2008 no extinto blog Maria Nerdeira. Outro dia fui acusada no Facebook de andar meio nostálgica. Não é isso, nostálgica eu sou sempre, mas nesse afã de me organizar (o apartamento, os contatos, a vida) acabam brotando dos baús umas lembranças assim. De quebra, as redes sociais trazem de longe um monte de veteranos e colegas que têm as mesmas reminiscências que eu. Vocês sabem que os velhinhos gostam de ter causos pra compartilhar…

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Uma das mais conceituadas universidades do Brasil, a Unicamp foi instaurada em 1966. Ao contrário de universidades mais antigas, como a UFRJ, que cresceram pela junção de faculdades já existentes, a Unicamp teve suas instalações cuidadosamente planejadas. O campus é praticamente circular – ou melhor, tem uma forma meio de pêra, representada no logo – com o Ciclo Básico no centro do círculo. O anel seguinte tem o restaurante universitário (vulgo bandejão), a biblioteca e o ginásio, além dos institutos de matérias básicas: Artes, Letras, Filosofia e Ciências Humanas, Matemática, Física, Química e Biologia. As ruas radiais têm nomes como