(Calma, bem mais calma, bem mais em paz.) Sorriso ou não, fez bandeira de viver diferente. Tudo era movimento e jogou da janela do ônibus suas verdades amassadas com as mãos. Rejeitou cada dogma da paixão: desejo não é indício de alma gêmea, aventura nem sempre é sair do porto seguro, e intimidade é um lençol bagunçado que sobra de um lado e falta do outro. Astronauta de si mesma, flutuou impelida pelos novos músculos e pelas entranhas fortes. Achou bonito entrar na roda-viva e nunca mais aceitou quem tem a cabeça a pé.
Eu te quero seu
Você, rapaz trotamundos já não tão inexperiente, que soube temperar testosterona com ternura, que para o bem ou para o mal sempre escolheu suas mulheres por serem fortes, que sempre as tratou muito bem, que quando não as tratou bem soube suportar o castigo estoicamente, que foi amigo das suas amigas, que emprestou os ouvidos a corações machucados, que foi camarada dos eleitos das amigas, que aguentou com esportiva as piadinhas dos amigos gays das namoradas, que convive modernamente bem com as ex-namoradas (mesmo as malucas), que soube aprender coisas, que soube ensinar coisas, que nunca aposentou o chapéu de amigo, que amou desamou deprimiu e amou, que foi passado de mão em mão pelas mulheres que te amaram para ser entregue à encantada, que viajou léguas only to be with her, você, criança grande do coração maior, merece encontrar sua sweet Lorraine.
Chovendo na roseira
E o esquecer era tão normal que o tempo parava.
Existe uma cidade em Minas que é a minha Macondo e uma certa fazenda onde moram os meus Buendía. O caminho para lá é sempre barrancos, pasto verde, curvas com histórias, falta muito?
O tempo na fazenda devia ter parado mas não: o fogão a lenha virou fogão industrial, cimento queimado virou ladrilho, suco de carambola virou coca-cola no café da manhã, o sertanejo virou pop, cavalos viraram motos e a casa se divide em quartos estranhos. Permanecem as roseiras, o incontrolável arbusto de rosa-chá, os gatos ariscos, os cachorros desenxabidos e o eterno morango de cerâmica.
As roseiras circundam a casa e nelas todos põem atenção – esta variedade era a preferida do bisavô, aquela da outra avó. Lá nos fundos, perto da piscina, longe da casa e quase totalmente coberta por uma folhagem tropical, fica a roseira de rosa-chá. Flores claras e pequenas, galhos indomáveis, sem espinhos, os montes de flores secas pedindo para serem arrancadas no primeiro nódulo, obsessivamente: tec-tec-tec.
Já vim para cá pequena, moleca, taluda, namoradeira, formada, casadoira, campineira, americana, desempregada, separada, segura, genealógica, urbana, mas sempre estranha. Nada do que sei ou sou vale de algo aqui. Perco totalmente a identidade. Não tem internet, não tem conta pra fazer, não tem celular, não tem simplicidade voluntária, não tem amizade, chope, namoro. Aqui sou só a mulher esquisita que não cozinha, não dirige e não tem filhos.
Quantos anos você tem? Trinta e quatro? Ainda dá tempo de dar uma cria. Fuga para a rosa-chá: tec-tec-tec.
E a chuva. Não parou de chover um minuto. Minto: o par de horas de estiagem trouxe a visita dos primos, súbitos adultos, universitários, conversando namoros e dramas acadêmicos para me distrair. Depois disso, mais chuva. A chuva mais longa de que eu me lembro.
Conto isso tudo não é para me lamentar não, mas para me explicar. Dá um pouco de raiva, insisto em não me definir por eles, e ao mesmo tempo quero mostrar que não sou só a safada-cosmopolita que uns imaginam a partir das coisas que falo justamente para parecer interessante. Sou também esse buraco, esse vazio, essa falta de lugar. Sou a moça que correu pra rosa-chá: tec-tec-tec.
Para ouvir: Fazenda
Para ver e ouvir: Chovendo na roseira (via @elesbao)
Para ler: Lisbon Revisited (1923) e Lisbon Revisited (1926)
Unicamp: geografia e gênero
O post abaixo foi publicado originalmente em 16/4/2008 no extinto blog Maria Nerdeira. Outro dia fui acusada no Facebook de andar meio nostálgica. Não é isso, nostálgica eu sou sempre, mas nesse afã de me organizar (o apartamento, os contatos, a vida) acabam brotando dos baús umas lembranças assim. De quebra, as redes sociais trazem de longe um monte de veteranos e colegas que têm as mesmas reminiscências que eu. Vocês sabem que os velhinhos gostam de ter causos pra compartilhar…
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Uma das mais conceituadas universidades do Brasil, a Unicamp foi instaurada em 1966. Ao contrário de universidades mais antigas, como a UFRJ, que cresceram pela junção de faculdades já existentes, a Unicamp teve suas instalações cuidadosamente planejadas. O campus é praticamente circular – ou melhor, tem uma forma meio de pêra, representada no logo – com o Ciclo Básico no centro do círculo. O anel seguinte tem o restaurante universitário (vulgo bandejão), a biblioteca e o ginásio, além dos institutos de matérias básicas: Artes, Letras, Filosofia e Ciências Humanas, Matemática, Física, Química e Biologia. As ruas radiais têm nomes como
Parole, parole, parole
Outro dia eu disse no twitter que se eu morrer (reparem no “se”), o que tenho escrito de melhor está guardado em emails a determinados amigos. Um deles é o jovem Bruno, com quem hoje troquei as seguintes frases de um diálogo sumariamente editado e com grifos posteriores:
B: Como vai você, Heloística?
M: Eu vou bem, Brunildo. O trabalho tem muito trabalho, a vida tem muita vida e o amor tem muitos amores. E a gente leva assim. Sem ginástica, sem unha feita, mas com alegria.
B: Então, eu também ando longe da academia, dentro da biblioteca segunda-quinta, e dentro do copo sexta-sábado. Descobri a boemia na hora errada da minha vida.
(…) (segue conversa sobre viajar juntos pra Europa) (seguem considerações sobre a bibiloteca em contraste à Europa) (…)
B: Olha eu dando asas à sua imaginação de cigana desaventurada.
M: No momento eu QUERIA ser uma cigana desaventurada mas estou muito ocupada chateando a mim mesma com uma adolescência tardia rosa-chiclete. Parece engraçado mas é um saco, é tipo uma tpm, mas não é.
B: Uma hora ela chega. Isso eu tô aprendendo. Aliás, esse é o grande projeto desse ano pra mim, virar adulto e aproveitar a adolescência que eu não tive.
Tem gente que me arranca a palavra exata e leva de mim o que tenho de mais sentido, profundo, engraçado ou espirituoso. É um desafio que amo, e me apego a esses fragmentos como antes me agarrava aos meus papelitos. Gosto de tê-los nestas gavetas quase-físicas ao invés de meras lembranças etéreas atreladas a mobiliários outros – uma mesa-de-bar, uma cama-sem-cama, um sofá-com-chá-e-filme – onde sim, ouço e falo e vejo e toco mas em compensação cambaleio sem o timing do sentido preciso e sem o wit de seriado e filme antigo, como se quisesse ser uma Katharine Hepburn sub-equatoriana e falhasse miseravelmente.
Por escrito surgirão ainda muitos posts como este, pensados no ônibus ou cuspidos num bloco qualquer, e frases de efeito no twitter. Ao vivo, porém, continuarão reinando l’esprit de l’escalier e o facepalm. Os roteiristas estão de férias.
Para ouvir: Words
Para ver e ouvir: Parole parole
Para ouvir e achar estranho: Parole parole (Zap Mama & Vincent Cassel)
Quem sabe o príncipe virou um sapo
Está chegando pelo correio o livro do meu ex-quase-futuro-sogro Príncipe Charles, chamado A Revolução da Sustentabilidade. Depois digo o que achei.
Tomara que ele apresente mesmo uma nova visão de mundo, porque eu não estou nem aí pros ursinhos polares.
Que diferença da mulher o homem tem?
Comecei dizendo que não queria ser mulherzinha e depois decidi que não queria ser machinho. Carece examinar com cuidado meus cromossomos comportamentais ou buscar no meu corpo o equilíbrio, Logunedé amazona.
O blog, por exemplo, é feminino do título às entrelinhas, passando pelas eventuais crises hormonais. Rola muito forte uma parada The Hours, onde as mulheres são seres borbulhantes nas profundezas e os homens, maridos-filhos, só vêem a superfície, “não sei de onde veio isso, ela enlouqueceu”.
Reli vários novembros. Percebi que este é mesmo o mês da retrospectiva. E das paixonites. Flores, amores, rancores, calores, dores, primaveras, outonos, temores, enganos. Algumas das paixões vingaram, outras não, outras vão. Também fui ridícula. Sem saber e também, feito agora, sabendo, fui ridícula no sim e no não.
Os nãos foram poucos, porque nunca entendi quem diz esse “não” preventivo, quem interrompe uma história feito quem sai do cinema. O sexo é bom, a conversa rendeu, e você de repente pára tudo e diz “vai dar merda, paramos aqui”? Isso me parece muito feminino e entendo que confunda os homens. Já vi essa bolsa de valores sendo operada por gente muito inteligente e muito estúpida, mas até agora em geral comprei na alta e vendi na baixa por não saber dizer chega.
Com ciclos dentro de ciclos fica mais óbvio que em algum momento vou ter que me despedir na cabeça de uma história que nem começou. Quando isso acontecer, vou morrer de pena, vou escrever cafona, vou chorar de birra, vou deixar a porta aberta e vou partir feito macho.
Para ouvir: How do I let a good man down?
Bancate ese defecto
no es culpa tuya si la nariz no hace juego en tu cara.
Querida,
está na hora de você seguir o rumo que esse seu nariz aponta e viver a vida cheia de vida que você merece.
Relutei em escrever, porque tantas vezes antes ouvi suas reclamações sobre seu relacionamento e tudo mais, tantas vezes te apoiei no seu trabalho e fui ignorada, que já não sei se de fato as coisas não estão bem ou se as confidências só servem para me manter perto quando você assim o quer.
Pois desta vez as minhas tripas te ouviram diferente, embora o cérebro ainda ache que você não sabe bem aonde vai. A energia que eu te via gastando para manter as coisas no que você acha que são seus devidos lugares agora parece que vai partir em flecha para causar mudança. Como te disse ontem, adoro te ver preparando a revolução.
Claro que digo isso em interesse próprio. Adoraria te ver mais solta pelo Rio e pelo mundo, te apresentar às pessoas, conversar olhando seus olhos e não manter essa puta amizade epistolar. No mundo em que eu vivo há espaço para pessoas cativadas e cativantes mas não para gente em cativeiro, mesmo conformadas. Queria que você visse o lado de cá.
Se dói mudar? Tive a pele arrancada a cada nova vida e não me arrependo de quase nada. Se tivesse sido fácil não estaria aqui, inventando conselhos fictícios para seu personagem fictício. Espero que dê tudo certo e que você conte comigo mesmo que saia em carne viva disso aí.
Cuide-se. Boa sorte. Eu te amo desde a época em que não gostava de você.
H.
Gosto de
suco de laranja
rede de dormir
café
wasabi
banho demorado
strogonoff
filme da audrey
chocolate muito amargo
internet
fotos
água de coco
cafuné
praia à tarde
arroz-feijão-farofa
cantar
sexo
guppies e espadinhas
coque
primavera
Ella, Nina, Bessie, Gal, Esperanza, Zap Mama
calor
saia comprida
Salt Song
poesia
andar a cavalo
simplicidade
crônicas
ser bisneta da Marfiza duas vezes
Amor nos Tempos do Cólera
estar cercada de mulheres fortes e poderosas
conversas interessantes
pessoas inteligentes
homens com coleção de LP
escrever
barulho de chuva
recortar e colar
casa de fazenda
estantes e bibliotecas
massagem
coisas coloridas
contas
colcha de retalhos
quindim
recortes do Matisse
coisas antigas e histórias de famíla
sair pra tomar cerveja
revistas de decoração
roxo e vermelho
a família firinfimfim
papo furado
viajar
meus amigos
intimidade
aprender outras línguas, e a minha
rir
mexerica
amoRRR e gentileza
gostar.
A lista é de 2008, inspirada por uma do Jampa, e é bom ver que de lá pra cá umas coisas mudaram e outras não. Editei bem pouco.
Para ouvir: My Favorite Things
Ela desatinou
Depois que deu pra Deus e todo mundo ficou indiferente. Não apática, só não aferrada à luta cotidiana de seduzir. Ia muito do clima, do dia, do estado de espírito e da época do mês. Por vezes acordava úmida sereia e se demorava a pentear com os braços levantados em frente ao espelho. Outras, era a última mortal, toda útero revirado, tomando banho ajoelhada no chão do boxe, a água fervente a lhe tirar o viço das costas. Ainda assim, é useiro e vezeiro avistá-la andando pela rua com um sorriso entre bobo e debochado cantando baixo alguma toada antiga, olhando para o chão e ignorando os prédios dos amantes.